Introdução
A história das religiões revela que, desde tempos
remotos, a busca pela verdade espiritual é acompanhada por uma rica diversidade
de crenças, práticas e interpretações acerca do Criador. Contudo, essa
pluralidade, quando mal compreendida, pode gerar intolerância, disputas e até
perseguições.
A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec,
propõe uma visão universalista e fraterna sobre a convivência entre diferentes
expressões de fé, destacando que o verdadeiro valor de qualquer crença se mede
pela sua capacidade de formar homens de bem e promover a lei do amor e da
caridade.
A
Liberdade de Consciência
Em O Livro dos Espíritos, particularmente
nas questões 835 a 842, os Espíritos esclarecem que a liberdade de consciência
é um direito inalienável do ser humano. Somente Deus pode julgar a intimidade
da fé de cada indivíduo. Impor restrições à consciência é abrir espaço para a
hipocrisia, afastando o homem de sua sinceridade interior.
Assim, toda crença sincera que conduza ao bem é
respeitável, mesmo que contenha equívocos doutrinários. Essa visão amplia o
conceito de civilização e progresso, ao reconhecer que a uniformidade de
pensamento não é condição para a paz — mas sim o respeito mútuo.
Sinais de
uma Doutrina Verdadeira
A resposta à questão 842 de O Livro dos
Espíritos é clara: a boa doutrina é aquela que produz mais homens de bem e
menos hipócritas, aplicando a lei de amor e caridade de forma ampla e pura.
Pelo contrário, qualquer ensinamento que provoque divisão e desunião entre os
filhos de Deus revela-se falso e nocivo.
Esse critério desloca o foco da religião de ritos e
formalidades para a transformação moral efetiva do indivíduo.
A
Caridade Sem Barreiras de Crença
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo,
encontramos a lição de que a beneficência não pode restringir-se ao círculo de
pessoas da mesma fé. O verdadeiro cristão socorre sem perguntar pela crença ou
opinião do necessitado.
Amar e servir mesmo os que divergem de nós é não
apenas um mandamento evangélico, mas também uma ponte para a aproximação
sincera — repelir alguém pela sua fé apenas fortalece barreiras.
A “Água
do Paraíso” e os Níveis da Verdade
A antiga parábola sufi narra que um beduíno,
habituado à vida árida do deserto, sobrevivia de tâmaras, carne de animais e
das águas salobras que encontrava em seu caminho. Certo dia, ao explorar o
areal, descobriu uma fonte diferente. A água, embora levemente salgada ao
paladar de quem conhecesse mananciais mais puros, era para ele um verdadeiro
néctar — a mais cristalina e saborosa que já experimentara. Comparada às águas
que conhecia, era como beber do próprio “Paraíso”.
Movido por gratidão e entusiasmo, encheu dois
odres: um para si e outro para oferecer ao califa Harun al-Rashid, governante
célebre por sua justiça e sabedoria. Ao chegar ao palácio e ser admitido à
presença do soberano, apresentou o presente com reverência:
—
Ó Comendador dos Crentes, conheço todas as águas do deserto e encontrei esta,
digna de vossos lábios! É a “Água do Paraíso”!
O califa provou um gole. Seu paladar refinado
percebeu o gosto salgado, distante da pureza das fontes do palácio, mas não
demonstrou estranheza ou desprezo. Ao contrário, sorriu, elogiou a descoberta
e, para honrar o gesto sincero, recompensou o beduíno com mil moedas de ouro.
Ordenou ainda que fosse imediatamente reconduzido
ao deserto, sem provar da água palaciana para que não percebesse a diferença e
não se sentisse humilhado. Antes de despedir-se, disse:
—
Guarda contigo essa “Água do Paraíso” e distribui-a, gratuitamente, a todos os
que cruzarem teu caminho, em meu nome.
A sabedoria desse gesto revela que toda verdade é
percebida segundo o estágio de quem a experimenta. Para o beduíno, aquela era a
melhor água do mundo; para o califa, não. No entanto, o valor estava no
significado e na sinceridade do presente, não em sua qualidade objetiva.
Assim também ocorre com as crenças religiosas: cada
pessoa as percebe e vive conforme seu nível de experiência e compreensão
espiritual. Desprezar ou ridicularizar a fé de alguém é ignorar o degrau que
ele ocupa na escada evolutiva. Tal como na escola, onde cada série tem
conteúdos próprios, a vida espiritual se desenvolve em etapas, cada qual com
sua linguagem e seu nível de entendimento. O respeito, portanto, deve
prevalecer, pois o Criador se revela a cada criatura segundo sua capacidade de
compreender e sentir.
Religião
Pura: A Essência da Fé
Segundo Tiago (1:27) e as reflexões trazidas por
Emmanuel, religião pura e imaculada é aquela que se traduz em serviço ao
próximo e integridade moral. Não se centra em disputas teológicas, ritualismos
ou ostentação material, mas na caridade incessante e na pureza de consciência.
O Espiritismo confirma essa visão ao afirmar que
Deus é servido não pelas formas exteriores, mas pela prática constante do bem.
Respeito
sem Conivência com o Erro
Emmanuel, no livro Justiça Divina, reforça
que devemos respeitar toda expressão religiosa sincera, reconhecendo que ela
pode atender à necessidade de determinado estágio evolutivo. Contudo, respeito
não significa aderir a ilusões ou reforçar preconceitos.
A fraternidade verdadeira busca esclarecer sem
violentar, iluminar sem humilhar e conduzir ao progresso sem impor.
Conclusão
Respeitar as crenças alheias não é apenas uma
atitude de tolerância social, mas um dever espiritual que se fundamenta na
caridade e no reconhecimento da diversidade dos caminhos que levam a Deus.
A Doutrina Espírita nos convida a enxergar no outro
um irmão em jornada, independentemente do símbolo que utilize para reverenciar
o Criador. Assim, mais importante que uniformizar doutrinas é uniformizar
sentimentos no amor, pois nele se encontra a expressão mais pura da fé.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. FEB. Questões 835-842.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. FEB.
Capítulos XI e XIII.
- XAVIER, Francisco Cândido. Justiça Divina, pelo Espírito
Emmanuel. FEB.
- Bíblia Sagrada. Epístola de Tiago, 1:27.
- Sabedoria Sufi: A Água do Paraíso.
- KARDEC, Allan. A Gênese. FEB.
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