quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A PENA DE TALIÃO E A JUSTIÇA DIVINA
ESTUDO ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

Introdução

A Revista Espírita, publicada por Allan Kardec entre 1858 e 1869, é um verdadeiro laboratório de experimentação filosófica, moral e científica da Doutrina Espírita. Entre os inúmeros relatos que ali encontramos, um dos mais impressionantes é a evocação de Antônio B..., registrada em setembro de 1861, no capítulo Conversas Familiares de Além-Túmulo: A Pena de Talião. O caso trata de um homem sepultado vivo por engano, que, após sua desencarnação, revela a causa espiritual de tão dolorosa provação.

Esse episódio nos convida a refletir sobre a justiça divina, o princípio de causa e efeito e a solidariedade entre as existências, em consonância com os ensinamentos codificados por Allan Kardec e aprofundados pelos Espíritos que colaboraram em sua obra.

A experiência de Antônio B...

Segundo o relato, Antônio B..., respeitado em vida por sua integridade, sofreu um destino terrível: vítima de um estado de morte aparente, foi enterrado vivo e, no desespero, encontrou uma agonia prolongada e cruel. Em comunicação mediúnica, ele mesmo afirma que tal experiência foi a consequência de um crime cometido em existência anterior, quando emparedara viva sua própria esposa. Tratava-se, portanto, da aplicação da chamada pena de talião, entendida no Espiritismo não como uma lei de vingança, mas como mecanismo de justiça reparadora escolhido pelo próprio espírito antes da reencarnação.

Erasto, Espírito instrutor, complementa que tais provas, embora raras, são solicitadas por alguns espíritos para acelerar sua purificação e reduzir o tempo de sofrimento no estado de erraticidade. Essa explicação encontra eco na lei de causa e efeito exposta em O Livro dos Espíritos, onde aprendemos que nenhuma dor é sem razão, e que a reencarnação é o meio pelo qual se processa a reparação e o progresso do espírito.

Justiça Divina e responsabilidade pessoal

O caso de Antônio B... demonstra que a justiça divina não é arbitrária, mas sempre proporcional à falta cometida. Mais do que isso, ressalta a liberdade e responsabilidade do espírito em sua trajetória: não há imposição externa, mas escolhas feitas à luz da necessidade de reparação e crescimento. Como destacou Lamennais, outro Espírito comunicante naquela sessão, o homem deve suportar as provas que o conduzem à perfeição, por mais cruéis que pareçam.

Essa compreensão substitui o temor irracional das penas eternas por uma visão lógica e moral da justiça de Deus. Não se trata de castigos vindos de fora, mas de experiências educativas que nos permitem superar os erros do passado e conquistar virtudes.

Reflexões morais

A narrativa convida a uma reflexão prática: se sofrimentos tão intensos podem ser escolhidos pelo espírito como meio de redenção, quanto mais devemos suportar com paciência as dores comuns da vida terrestre. Provações físicas, dificuldades materiais e desgostos morais, que muitas vezes nos parecem insuportáveis, adquirem novo significado à luz do Espiritismo: não são punições aleatórias, mas oportunidades de aprendizado e elevação.

Por outro lado, a lembrança de que cada ação terá suas consequências naturais deve servir de freio aos nossos impulsos inferiores. O exemplo de Antônio B... é mais eficaz para despertar a consciência do que o dogma de penas eternas, porque se apoia na lógica da lei de causa e efeito, inscrita na própria razão.

Conclusão

O caso relatado na Revista Espírita em 1861 ilustra, de modo impressionante, a aplicação da lei de justiça divina e a continuidade das existências. O passado, mesmo distante, retorna como oportunidade de reparação, e cada dor que experimentamos é degrau para a libertação. Assim, aprendemos que a verdadeira justiça de Deus não se traduz em castigos arbitrários, mas em lições que nos conduzem, passo a passo, à perfeição espiritual.

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Nota explicativa sobre Erasto e Lamennais

O Espírito Erasto é apresentado nas obras de Allan Kardec como um dos colaboradores espirituais da Codificação. Segundo a tradição, trata-se de Erasto de Corinto, discípulo do Apóstolo Paulo, mencionado no Novo Testamento (cf. Atos 19:22; Romanos 16:23; 2 Timóteo 4:20). Identificado como tesoureiro da cidade de Corinto, é também considerado por algumas tradições cristãs como um dos setenta discípulos do Evangelho. No Espiritismo, Erasto destacou-se por suas instruções de caráter moral e disciplinador, sobretudo sobre a prática mediúnica e a conduta dos grupos espíritas. A ele é atribuída a conhecida máxima, registrada por Kardec em O Livro dos Médiuns (Cap. XX, item 230): “Mais vale repelir dez verdades do que admitir uma só mentira, uma só teoria falsa.”

O Espírito Lamennais, por sua vez, é a individualidade de Félicité Robert de La Mennais (1782–1854), padre e filósofo francês, figura influente no pensamento social e religioso da França do século XIX. Crítico do absolutismo e do conservadorismo da Igreja, acabou por romper com Roma e aproximar-se de correntes progressistas. Foi membro do Instituto Histórico de Paris, do qual Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) também fazia parte, o que mostra que ambos partilharam o mesmo meio intelectual, ainda que não tenham sido necessariamente próximos. Após sua desencarnação, Lamennais comunicou-se por via mediúnica em diversas ocasiões, especialmente por intermédio do médium Alfred Didier, e suas mensagens encontram-se publicadas em O Evangelho segundo o Espiritismo e na Revista Espírita (1858–1869). Nessas instruções, revelou-se como um Espírito comprometido com a renovação moral da humanidade e com a difusão dos princípios do Cristianismo redimido pelo Espiritismo.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 77ª ed. FEB, 2009.
  • KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 4ª ed. FEB, 2013.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 5ª ed. FEB, 2012.
  • KARDEC, Allan (org.). Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos. Ano 4 – Setembro de 1861.
  • KARDEC, Allan. Obras Póstumas. FEB.

 

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