Introdução
A Revista
Espírita, publicada por Allan Kardec entre 1858 e 1869, é um verdadeiro
laboratório de experimentação filosófica, moral e científica da Doutrina
Espírita. Entre os inúmeros relatos que ali encontramos, um dos mais
impressionantes é a evocação de Antônio B..., registrada em setembro de 1861,
no capítulo Conversas Familiares de Além-Túmulo: A Pena de Talião. O
caso trata de um homem sepultado vivo por engano, que, após sua desencarnação,
revela a causa espiritual de tão dolorosa provação.
Esse
episódio nos convida a refletir sobre a justiça divina, o princípio de causa e
efeito e a solidariedade entre as existências, em consonância com os
ensinamentos codificados por Allan Kardec e aprofundados pelos Espíritos que
colaboraram em sua obra.
A experiência de Antônio B...
Segundo
o relato, Antônio B..., respeitado em vida por sua integridade, sofreu um
destino terrível: vítima de um estado de morte aparente, foi enterrado vivo e,
no desespero, encontrou uma agonia prolongada e cruel. Em comunicação
mediúnica, ele mesmo afirma que tal experiência foi a consequência de um crime
cometido em existência anterior, quando emparedara viva sua própria esposa.
Tratava-se, portanto, da aplicação da chamada pena de talião, entendida
no Espiritismo não como uma lei de vingança, mas como mecanismo de justiça
reparadora escolhido pelo próprio espírito antes da reencarnação.
Erasto,
Espírito instrutor, complementa que tais provas, embora raras, são solicitadas
por alguns espíritos para acelerar sua purificação e reduzir o tempo de
sofrimento no estado de erraticidade. Essa explicação encontra eco na lei de
causa e efeito exposta em O Livro dos Espíritos, onde aprendemos que
nenhuma dor é sem razão, e que a reencarnação é o meio pelo qual se processa a
reparação e o progresso do espírito.
Justiça Divina e responsabilidade pessoal
O caso
de Antônio B... demonstra que a justiça divina não é arbitrária, mas sempre
proporcional à falta cometida. Mais do que isso, ressalta a liberdade e
responsabilidade do espírito em sua trajetória: não há imposição externa, mas
escolhas feitas à luz da necessidade de reparação e crescimento. Como destacou
Lamennais, outro Espírito comunicante naquela sessão, o homem deve suportar as
provas que o conduzem à perfeição, por mais cruéis que pareçam.
Essa
compreensão substitui o temor irracional das penas eternas por uma visão lógica
e moral da justiça de Deus. Não se trata de castigos vindos de fora, mas de
experiências educativas que nos permitem superar os erros do passado e
conquistar virtudes.
Reflexões morais
A narrativa
convida a uma reflexão prática: se sofrimentos tão intensos podem ser
escolhidos pelo espírito como meio de redenção, quanto mais devemos suportar
com paciência as dores comuns da vida terrestre. Provações físicas,
dificuldades materiais e desgostos morais, que muitas vezes nos parecem
insuportáveis, adquirem novo significado à luz do Espiritismo: não são punições
aleatórias, mas oportunidades de aprendizado e elevação.
Por
outro lado, a lembrança de que cada ação terá suas consequências naturais deve
servir de freio aos nossos impulsos inferiores. O exemplo de Antônio B... é
mais eficaz para despertar a consciência do que o dogma de penas eternas,
porque se apoia na lógica da lei de causa e efeito, inscrita na própria razão.
Conclusão
O caso
relatado na Revista Espírita em 1861 ilustra, de modo impressionante, a
aplicação da lei de justiça divina e a continuidade das existências. O passado,
mesmo distante, retorna como oportunidade de reparação, e cada dor que
experimentamos é degrau para a libertação. Assim, aprendemos que a verdadeira
justiça de Deus não se traduz em castigos arbitrários, mas em lições que nos
conduzem, passo a passo, à perfeição espiritual.
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Nota explicativa sobre Erasto e Lamennais
O Espírito
Erasto é apresentado nas obras de Allan Kardec como um dos colaboradores
espirituais da Codificação. Segundo a tradição, trata-se de Erasto de Corinto,
discípulo do Apóstolo Paulo, mencionado no Novo Testamento (cf. Atos
19:22; Romanos 16:23; 2 Timóteo 4:20). Identificado como tesoureiro da cidade
de Corinto, é também considerado por algumas tradições cristãs como um dos
setenta discípulos do Evangelho. No Espiritismo, Erasto destacou-se por suas
instruções de caráter moral e disciplinador, sobretudo sobre a prática
mediúnica e a conduta dos grupos espíritas. A ele é atribuída a conhecida
máxima, registrada por Kardec em O Livro dos Médiuns (Cap. XX, item
230): “Mais vale repelir dez verdades do
que admitir uma só mentira, uma só teoria falsa.”
O Espírito
Lamennais, por sua vez, é a individualidade de Félicité Robert de La
Mennais (1782–1854), padre e filósofo francês, figura influente no pensamento
social e religioso da França do século XIX. Crítico do absolutismo e do
conservadorismo da Igreja, acabou por romper com Roma e aproximar-se de
correntes progressistas. Foi membro do Instituto Histórico de Paris, do
qual Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) também fazia parte, o que
mostra que ambos partilharam o mesmo meio intelectual, ainda que não tenham
sido necessariamente próximos. Após sua desencarnação, Lamennais comunicou-se
por via mediúnica em diversas ocasiões, especialmente por intermédio do médium
Alfred Didier, e suas mensagens encontram-se publicadas em O Evangelho
segundo o Espiritismo e na Revista Espírita (1858–1869). Nessas
instruções, revelou-se como um Espírito comprometido com a renovação moral da
humanidade e com a difusão dos princípios do Cristianismo redimido pelo
Espiritismo.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. 77ª ed. FEB, 2009.
- KARDEC, Allan. O
Céu e o Inferno. 4ª ed. FEB, 2013.
- KARDEC, Allan. A
Gênese. 5ª ed. FEB, 2012.
- KARDEC, Allan
(org.). Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos. Ano 4 –
Setembro de 1861.
- KARDEC, Allan. Obras
Póstumas. FEB.
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