Introdução
Desde
os primórdios das manifestações espirituais sistematizadas por Allan Kardec,
uma das críticas mais recorrentes dirigidas ao Espiritismo refere-se às
aparentes contradições nas comunicações dos Espíritos. Essa diversidade de
mensagens, por vezes contraditórias, gerou dúvidas sobre a credibilidade do
fenômeno e serviu de argumento aos adversários da Doutrina nascente. Kardec, no
artigo “Contradições na linguagem dos Espíritos”, publicado na Revista
Espírita de agosto de 1858, abordou com profundidade essa questão,
oferecendo um estudo metodológico e racional que permanece atual para os
estudiosos contemporâneos do Espiritismo.
Hoje,
mais de um século e meio após aquelas observações, as comunicações espirituais
continuam a ser objeto de análise e discernimento. Em uma era marcada pela
velocidade da informação e pela expansão digital dos conteúdos mediúnicos, a
lição de Kardec sobre a necessidade do estudo, da observação e da crítica
racional adquire novo valor. A Doutrina Espírita, como ciência de observação e
filosofia moral, exige do investigador o mesmo rigor que se aplica a qualquer
outro campo do conhecimento humano.
A Necessidade de um Método: Do Fenômeno à Ciência
Kardec
observou que todas as ciências, em seus primórdios, enfrentaram contradições e
anomalias. A Botânica, a Medicina, a Física e até a Linguística passaram por
fases de incerteza até que a observação comparada e a experiência consolidassem
suas bases. O Espiritismo, em sua fase inicial, não poderia fugir a essa lei
natural da evolução do conhecimento.
Assim
como um naturalista precisa de tempo e método para compreender as espécies, o
pesquisador espírita deve comparar comunicações, observar sua coerência e
confrontá-las com os princípios fundamentais da Doutrina. O Controle
Universal do Ensino dos Espíritos — método proposto por Kardec — permanece
como critério essencial de validação: uma ideia só pode ser aceita como verdade
espírita quando confirmada, de forma concordante, por Espíritos sérios, através
de médiuns diversos e em locais distintos.
Essa
metodologia protege o Espiritismo tanto do erro humano quanto da influência dos
Espíritos inferiores ou mistificadores, evitando que opiniões pessoais ou
comunicações isoladas se transformem em “dogmas” particulares.
A Escala Espírita e o Grau de Evolução dos
Comunicantes
Uma
das explicações mais elucidativas apresentadas por Kardec é a diversidade de
graus evolutivos dos Espíritos. Assim como na Terra há seres humanos de
diferentes níveis intelectuais e morais, o mundo espiritual é composto por
Espíritos em variadas etapas de progresso. Seria ilógico supor que um Espírito
ignorante e atrasado pudesse expressar-se com a mesma sabedoria e elevação de
um Espírito puro ou de um missionário do bem.
Com
base nesse princípio, compreende-se que as contradições decorrem, em grande
parte, das limitações de certos Espíritos, que ainda conservam preconceitos,
paixões e opiniões humanas. O estudioso, portanto, deve avaliar o conteúdo
moral e intelectual das comunicações, julgando-as pela elevação do pensamento e
pela coerência com os ensinamentos universais do bem e da razão.
Kardec
sintetizou esse discernimento com clareza:
“Reconhecereis os bons
Espíritos pelos princípios que ensinam, porque todo Espírito que não ensina o
bem não é um bom Espírito, e deveis repeli-lo.” (Revista Espírita,
agosto de 1858)
O Papel do Médium e a Interferência Humana
Outro
fator importante é a influência do próprio médium. A comunicação espiritual,
para se tornar compreensível, passa necessariamente pelo filtro da mente, da
linguagem e da cultura do intermediário. Kardec advertiu que as imperfeições
morais e intelectuais do médium podem distorcer o pensamento transmitido,
alterando-lhe o sentido ou o tom.
Por
isso, o Espiritismo recomenda o cultivo da educação mediúnica, da vigilância
moral e do estudo doutrinário. O médium bem instruído e moralmente equilibrado
torna-se instrumento mais fiel, reduzindo a possibilidade de interferências ou
mistificações.
Nos
tempos atuais, em que as comunicações mediúnicas circulam com rapidez nas redes
sociais e plataformas digitais, o cuidado com a autenticidade e a qualidade
moral das mensagens torna-se ainda mais urgente. A divulgação irresponsável de
textos apócrifos, atribuídos a Espíritos veneráveis sem a devida análise,
representa risco de deturpação doutrinária.
A Linguagem, o Contexto e o Princípio da Caridade
Intelectual
Kardec
também explicou que os Espíritos superiores adaptam sua linguagem ao nível
intelectual, moral e cultural dos interlocutores. Assim como um professor
ensina de forma diferente a uma criança e a um adulto, os Espíritos empregam
expressões e conceitos adequados à compreensão de cada grupo. Essa pedagogia
espiritual, longe de constituir contradição, demonstra sabedoria e prudência.
É por
isso que as comunicações devem ser interpretadas com discernimento e
flexibilidade, considerando-se o contexto e o público a que se destinam. A
verdade espírita é progressiva, e a linguagem dos Espíritos reflete esse
movimento contínuo de educação moral da humanidade.
Discernimento e Maturidade Espiritual
As
aparentes contradições, portanto, não invalidam a Doutrina Espírita, mas a
confirmam em sua coerência com as leis naturais do progresso. Assim como a
ciência humana evolui pela comparação e pela crítica, o Espiritismo se purifica
pela análise e pelo estudo.
A
Doutrina não convida à fé cega, mas ao raciocínio esclarecido. As comunicações
espirituais devem ser avaliadas com calma, razão e critério moral. A verdade
não se impõe pela autoridade do nome que a transmite, mas pela pureza e
coerência dos princípios que ensina.
Em
última análise, o Espiritismo ensina que o estudo metódico, a caridade
intelectual e o amor à verdade são as ferramentas do discernimento espiritual.
Como escreveu Kardec, o observador sério “haure
uma multidão de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial”. A
experiência, aliada à paciência e à humildade, é o caminho seguro para
distinguir o verdadeiro do ilusório.
Referências
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, agosto de 1858. Artigo:
“Contradições na linguagem dos Espíritos”.
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Médiuns. 2ª parte, cap. XXIV – “Identidade dos Espíritos”.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XXI – “Haverá falsos cristos e
falsos profetas”.
- ______. A Gênese.
Cap. I – “Caráter da Revelação Espírita”.
- ______. Obras
Póstumas. 2ª parte – “Constituição do Espiritismo”.
- FEDERAÇÃO ESPÍRITA
BRASILEIRA. Revista Espírita – Tradução integral e comentada.
Brasília: FEB, 2020.
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