Um
estudo à luz de "O Livro dos Espíritos" e obras complementares de
Allan Kardec
Introdução
A
Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec a partir de 1857, oferece uma
visão profunda e racional sobre a vida, o ser espiritual e seu destino. Um de
seus princípios fundamentais é a reencarnação — o retorno do Espírito à
vida corpórea, em diferentes existências, como parte de um processo contínuo de
aprendizado, aperfeiçoamento e evolução.
Neste artigo, propomos um estudo baseado principalmente
no Livro II, Capítulo II de O Livro
dos Espíritos, abordando a finalidade da encarnação, segundo a
filosofia espírita, com suporte em outras obras fundamentais da Codificação,
como A Gênese, O Céu e o Inferno, Obras Póstumas e a Revista Espírita. Através dessas
fontes, veremos como a encarnação se constitui num instrumento essencial ao
progresso intelectual e moral do Espírito.
1. A origem do Espírito e a necessidade de encarnar
O
Espírito é criado por Deus simples e ignorante, ou seja, sem saber nem fazer o
bem ou o mal, mas dotado de potencialidades latentes. No início de sua jornada,
age por instinto, com consciência restrita de seus atos e responsabilidade
ainda inexistente (1). Por isso, a encarnação surge como uma
necessidade natural, permitindo o desenvolvimento gradual da inteligência e
da moralidade.
Assim
como o estudante não atinge os graus mais altos sem passar por todas as
classes, também o Espírito não alcança a perfeição sem passar por múltiplas
existências corporais (6).
2. A encarnação: instrumento de progresso
Cada
vida corporal é uma nova etapa no caminho evolutivo. O Espírito encarnado deve
atender à Lei de Conservação, garantindo a sobrevivência do corpo
físico, o que o leva a desenvolver suas faculdades através do trabalho e da
convivência (2). A encarnação, portanto, cumpre dupla função:
- Progresso
intelectual,
através do exercício da inteligência e das experiências da vida prática;
- Progresso moral, pela vivência
social e pelas provas a que o Espírito se submete no convívio com outros
(5).
Embora
possa envolver sofrimentos, a encarnação não é necessariamente uma punição,
mas uma condição própria dos Espíritos imperfeitos que precisam do
contato com a matéria para depurar-se (3).
3. Aprendizado, Expiação, Missão e Justiça Divina
A
finalidade da encarnação varia conforme o grau evolutivo do Espírito e o
estágio em que se encontra em sua trajetória.
- Nos primeiros
passos da evolução, quando o princípio inteligente acaba de se
individualizar como Espírito, a encarnação tem por fim exclusivo o
aprendizado. Ainda sem consciência moral, o Espírito não tem o que
expiar. Tudo é prova educativa, compatível com sua capacidade de
aprender, num processo de amadurecimento gradual da inteligência e da
moralidade.
- Nos estágios
intermediários, quando já adquiriu noções de certo e errado
e dispõe de livre-arbítrio, o Espírito pode incorrer em faltas e
desviar-se das leis divinas. Nesse ponto, a encarnação assume também o
caráter de expiação, ou seja, um conjunto de provas corretivas,
destinadas à reparação de erros e ao reajuste com a consciência e a Lei.
- Para os Espíritos
mais adiantados, moral e intelectualmente, a encarnação
torna-se uma missão elevada, motivada pela vontade de servir,
auxiliar os semelhantes e colaborar com o progresso espiritual da
Humanidade. Nesses casos, os sofrimentos não decorrem da imperfeição, mas
da abnegação e do amor ao próximo.
A
justiça divina se revela de forma perfeita e misericordiosa ao assegurar que nenhum
Espírito seja privado das oportunidades de progresso. Cada um recebe, ao
longo do tempo, tantas existências quantas forem necessárias para
atingir a perfeição (9).
Ninguém
está condenado eternamente à ignorância ou ao sofrimento: “a cada um segundo
as suas obras” — conforme disse Jesus — mas também segundo sua
capacidade de aprender, crescer e reparar o passado, dentro de um processo
educacional contínuo, justo e solidário.
4. Livre-arbítrio, responsabilidade e mérito
Com o
desenvolvimento da razão, o Espírito conquista o livre-arbítrio e passa
a ser responsável por suas escolhas (16). Não há queda moral em si: o mal que
comete é resultado de sua imperfeição e da liberdade mal utilizada, e não de
uma regressão de um estado bom para um estado pior.
As faltas
e sofrimentos vividos no plano material resultam de suas próprias
imperfeições (15), e a repetição de encarnações difíceis é muitas vezes
consequência de negligência, preguiça moral ou abuso das faculdades recebidas
(6).
5. A reencarnação e o progresso coletivo
A
reencarnação não promove apenas o progresso individual, mas a evolução
solidária da Humanidade. Cada Espírito, em qualquer estágio da jornada,
está posicionado entre um mais elevado (que o orienta) e um mais atrasado (que
dele necessita), criando uma rede de cooperação contínua (10).
Assim,
o Espírito colabora ativamente com a obra divina, participando da Criação,
governando os elementos da natureza conforme seu grau de adiantamento e
conhecimento das leis naturais (14).
6. As leis da Providência e a superação da matéria
À
medida que o Espírito se depura e se espiritualiza, livra-se
gradualmente da influência da matéria. Sua felicidade passa a ser proporcional
ao seu progresso. Como Deus é justo, não concede felicidade sem esforço, luta
ou mérito (15).
Espíritos
mais elevados podem aceitar voluntariamente a encarnação, em mundos
menos adiantados, com propósitos missionários. Suas dores, então, são frutos do
amor e da renúncia, não mais da imperfeição (13).
7. As convulsões sociais e o papel das provações
Momentos
de crise, conflitos e transformações sociais oferecem ao Espírito provas
desafiadoras, mas altamente educativas. A convivência com as diferenças, as
dores do mundo, os embates morais e as dificuldades materiais impulsionam o
Espírito a refletir e buscar melhorias (17).
Na
erraticidade — o estado entre uma encarnação e outra — o Espírito tem
oportunidade de analisar suas escolhas passadas e se preparar para
novas experiências, determinando metas para uma futura existência mais
proveitosa (18).
Conclusão
A encarnação,
à luz da Doutrina Espírita, é uma bênção concedida pela Providência Divina.
Longe de ser castigo, é uma ferramenta indispensável ao progresso do
Espírito rumo à perfeição. Por meio das experiências, das lutas, dos
reencontros, das provas e das missões na vida corporal, o Espírito se
transforma, purifica-se e contribui com a obra universal.
A
reencarnação, como expressão da justiça e bondade divinas, assegura a cada ser
espiritual tempo e oportunidades ilimitadas para aprender, corrigir, evoluir
e amar — até que alcance a plenitude da felicidade, na condição de Espírito
puro.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Livro II, Cap. II e IV, questões 133 e 189.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro III, Cap. V.
- ———. A Gênese. Cap. XI, item 25.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro II, Cap. II, questão 132.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro III, Cap. VII, questões 767 e 768.
- ———. Revista Espírita. Junho de 1863.
- ———. O Céu e o Inferno. Cap. III, item 9.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro II, Cap. IV, questão 170.
- ———. O Céu e o Inferno. Cap. III, item 9.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro II, Cap. X, questões 558 e 566; Livro III, Cap. XI, questão 888a.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro II, Cap. II e IX, questões 132, 540, 573, 604, 607.
- ———. O Céu e o Inferno. Cap. III, item 9.
- ———. O Céu e o Inferno. Cap. III, itens 8 e 9.
- ———. Revista Espírita. Agosto de 1869.
- ———. O Livro dos Espíritos. Livro II, Cap. II, questão 133.
- ———. Revista Espírita. Junho de 1863.
- ———. Revista Espírita. Outubro de 1858.
- ———. Obras Póstumas. Cap. “As expiações coletivas”.
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