sábado, 9 de agosto de 2025

A HARMONIA DA CRIAÇÃO: CONEXÕES ENTRE A VISÃO DE ENOQUE E A DOUTRINA ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

Introdução

A busca humana por compreender a origem e a ordem do universo atravessa culturas, religiões e séculos. Escritos antigos e doutrinas mais recentes frequentemente convergem em pontos essenciais sobre a natureza, sua organização e a responsabilidade moral do ser humano para com ela.

O Livro de Enoque¹, considerado um texto apócrifo — ou seja, não incluído no cânone bíblico oficial — é valorizado por algumas tradições religiosas e por estudiosos interessados em entender o pensamento e a espiritualidade de épocas remotas. Embora não seja reconhecido oficialmente por todas as correntes cristãs, seu conteúdo oferece ricas reflexões sobre a criação e a ordem do cosmos.

O Espiritismo², codificado por Allan Kardec no século XIX, vai além de um recorte histórico ou teológico, buscando compreender a história espiritual da humanidade em todos os tempos — incluindo as mensagens de textos antigos como o de Enoque. Ambos, apesar da distância temporal e cultural, apresentam uma visão comum: a criação é expressão da sabedoria e do amor divinos, e o ser humano é chamado a viver em sintonia com essa harmonia universal.

Criação: a Obra Divina em Toda Parte

No Livro de Enoque 2:1, lemos:

“Considerai todas as coisas que existem nos céus, como elas não mudam os seus cursos; e observai a terra, e compreendei o que nela se passa desde o princípio até o fim.”³

Essa contemplação do universo como uma obra perfeitamente ordenada encontra paralelo direto em O Livro dos Espíritos, questão 1, quando Kardec pergunta:

“Que é Deus?”
— “Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.”⁴

Assim como Enoque contempla a regularidade e a perfeição dos céus e da Terra, o Espiritismo reconhece nessas leis imutáveis a assinatura da Inteligência Suprema. Nada está entregue ao acaso; cada elemento — do mais ínfimo átomo à maior galáxia — cumpre uma função no equilíbrio universal.

Harmonia: a Lei que Sustenta o Universo

No versículo 2 de Enoque, encontramos:

“Vede como todas as coisas permanecem como estão, como a luz do sol e da lua permanece.”

Essa observação remete, no pensamento espírita, à Lei de Harmonia e à Solidariedade Universal. Em O Livro dos Espíritos, questão 617, lemos:

“A lei natural é a lei de Deus; é a única verdadeira para a felicidade do homem. Ela lhe indica o que deve fazer ou não fazer, e ele só é infeliz quando dela se afasta.”

Enquanto Enoque nota que cada parte da criação se mantém em perfeito equilíbrio, Kardec ressalta que a felicidade e a ordem resultam da obediência a essa lei divina. Romper esse equilíbrio — seja no plano ecológico, social ou moral — é afastar-se da harmonia universal.

Responsabilidade: o Dever Humano de Cuidar

O Capítulo 2 de Enoque encerra-se com a clara noção de que a criação, sendo bela e ordenada, exige do ser humano uma vida coerente com essa ordem⁷. Essa ideia ecoa na Lei de Progresso, presente em O Livro dos Espíritos, questão 776:

“O progresso é condição da natureza humana. Ninguém pode opor-se a ele; é inútil resistir.”

No pensamento espírita, progresso não é apenas avanço tecnológico, mas também aprimoramento moral e consciência ecológica. Kardec, na Revista Espírita (abril de 1864), reforça:

“O homem é o administrador e não o proprietário absoluto da Terra, devendo prestar contas do uso que faz dela.”

Enoque, ao perceber a perfeição do universo, intui que romper essa harmonia é agir contra a razão de nossa própria existência — uma compreensão que o Espiritismo formaliza e amplia.

Conclusão

A visão cósmica de Enoque, mesmo sendo fruto de um contexto religioso e histórico distinto e registrada num texto apócrifo, antecipa princípios que o Espiritismo codificaria séculos depois como leis morais universais.

Tanto na poesia mística de Enoque quanto no raciocínio filosófico e moral de Kardec, encontramos um chamado idêntico: reconhecer na criação o reflexo da perfeição divina e assumir a responsabilidade de viver em harmonia com ela. Cuidar do mundo, preservar sua ordem e respeitar suas leis naturais é, ao mesmo tempo, um ato de amor ao próximo e de reverência ao Criador.

Notas de Rodapé

  1. Contexto do Livro de Enoque – Texto apocalíptico e sapiencial, provavelmente escrito entre os séculos III a.C. e I a.C., conservado principalmente na tradição etíope. Não faz parte do cânone judaico ou cristão tradicional, mas é citado em Judas 1:14-15.
  2. Espiritismo – Doutrina codificada por Allan Kardec entre 1857 e 1868, fundamentada no estudo das leis morais e naturais, na comunicação com os Espíritos e na busca da transformação íntima.
  3. Enoque 2:1 – Trecho que reflete a visão antiga do cosmos como obra estável e ordenada, revelando a crença de que a regularidade dos astros é sinal da perfeição divina.
  4. O Livro dos Espíritos, Q. 1 – Primeira pergunta da obra fundamental do Espiritismo, estabelecendo Deus como causa primária de todas as coisas, sem origem e absoluto.
  5. Enoque 2:2 – Reflete a ideia da constância dos ciclos celestes (Sol, Lua), entendida na época como prova da ordem divina imutável.
  6. O Livro dos Espíritos, Q. 617 – Define a lei natural como expressão da vontade divina, fundamento da felicidade humana.
  7. Enoque – Final do Capítulo 2 – Embora não traga mandamento explícito, sugere implicitamente que o ser humano deve viver em sintonia com a ordem natural.
  8. O Livro dos Espíritos, Q. 776 – Afirma o progresso como inevitável e parte integrante da condição humana, tanto moral quanto material.
  9. Revista Espírita, abril de 1864 – Artigo em que Kardec reforça a noção de responsabilidade humana diante dos recursos naturais, contrapondo-se à exploração egoísta.

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