Introdução
A busca humana por compreender a origem e a ordem
do universo atravessa culturas, religiões e séculos. Escritos antigos e
doutrinas mais recentes frequentemente convergem em pontos essenciais sobre a
natureza, sua organização e a responsabilidade moral do ser humano para com
ela.
O Livro de Enoque¹, considerado um texto
apócrifo — ou seja, não incluído no cânone bíblico oficial — é valorizado por
algumas tradições religiosas e por estudiosos interessados em entender o
pensamento e a espiritualidade de épocas remotas. Embora não seja reconhecido
oficialmente por todas as correntes cristãs, seu conteúdo oferece ricas
reflexões sobre a criação e a ordem do cosmos.
O Espiritismo², codificado por Allan Kardec no
século XIX, vai além de um recorte histórico ou teológico, buscando compreender
a história espiritual da humanidade em todos os tempos — incluindo as mensagens
de textos antigos como o de Enoque. Ambos, apesar da distância temporal e
cultural, apresentam uma visão comum: a criação é expressão da sabedoria e do
amor divinos, e o ser humano é chamado a viver em sintonia com essa harmonia
universal.
Criação:
a Obra Divina em Toda Parte
No Livro de Enoque 2:1, lemos:
“Considerai
todas as coisas que existem nos céus, como elas não mudam os seus cursos; e
observai a terra, e compreendei o que nela se passa desde o princípio até o
fim.”³
Essa contemplação do universo como uma obra
perfeitamente ordenada encontra paralelo direto em O Livro dos Espíritos,
questão 1, quando Kardec pergunta:
“Que
é Deus?”
— “Deus é a inteligência suprema,
causa primária de todas as coisas.”⁴
Assim como Enoque contempla a regularidade e a
perfeição dos céus e da Terra, o Espiritismo reconhece nessas leis imutáveis a
assinatura da Inteligência Suprema. Nada está entregue ao acaso; cada elemento
— do mais ínfimo átomo à maior galáxia — cumpre uma função no equilíbrio
universal.
Harmonia:
a Lei que Sustenta o Universo
No versículo 2 de Enoque, encontramos:
“Vede
como todas as coisas permanecem como estão, como a luz do sol e da lua
permanece.”⁵
Essa observação remete, no pensamento espírita, à
Lei de Harmonia e à Solidariedade Universal. Em O Livro dos Espíritos,
questão 617, lemos:
“A
lei natural é a lei de Deus; é a única verdadeira para a felicidade do homem.
Ela lhe indica o que deve fazer ou não fazer, e ele só é infeliz quando dela se
afasta.”⁶
Enquanto Enoque nota que cada parte da criação se
mantém em perfeito equilíbrio, Kardec ressalta que a felicidade e a ordem
resultam da obediência a essa lei divina. Romper esse equilíbrio — seja no
plano ecológico, social ou moral — é afastar-se da harmonia universal.
Responsabilidade:
o Dever Humano de Cuidar
O Capítulo 2 de Enoque encerra-se com a clara noção
de que a criação, sendo bela e ordenada, exige do ser humano uma vida coerente
com essa ordem⁷. Essa ideia ecoa na Lei de Progresso, presente em O Livro dos
Espíritos, questão 776:
“O
progresso é condição da natureza humana. Ninguém pode opor-se a ele; é inútil
resistir.”⁸
No pensamento espírita, progresso não é apenas
avanço tecnológico, mas também aprimoramento moral e consciência ecológica.
Kardec, na Revista Espírita (abril de 1864), reforça:
“O
homem é o administrador e não o proprietário absoluto da Terra, devendo prestar
contas do uso que faz dela.”⁹
Enoque, ao perceber a perfeição do universo, intui
que romper essa harmonia é agir contra a razão de nossa própria existência —
uma compreensão que o Espiritismo formaliza e amplia.
Conclusão
A visão cósmica de Enoque, mesmo sendo fruto de um
contexto religioso e histórico distinto e registrada num texto apócrifo,
antecipa princípios que o Espiritismo codificaria séculos depois como leis
morais universais.
Tanto na poesia mística de Enoque quanto no
raciocínio filosófico e moral de Kardec, encontramos um chamado idêntico:
reconhecer na criação o reflexo da perfeição divina e assumir a
responsabilidade de viver em harmonia com ela. Cuidar do mundo, preservar sua
ordem e respeitar suas leis naturais é, ao mesmo tempo, um ato de amor ao
próximo e de reverência ao Criador.
Notas de
Rodapé
- Contexto do Livro de Enoque – Texto apocalíptico e sapiencial, provavelmente escrito entre os séculos III a.C. e I a.C., conservado principalmente na tradição etíope. Não faz parte do cânone judaico ou cristão tradicional, mas é citado em Judas 1:14-15.
- Espiritismo – Doutrina codificada por Allan Kardec entre 1857 e 1868, fundamentada no estudo das leis morais e naturais, na comunicação com os Espíritos e na busca da transformação íntima.
- Enoque 2:1 – Trecho que reflete a visão antiga do cosmos como obra estável e ordenada, revelando a crença de que a regularidade dos astros é sinal da perfeição divina.
- O Livro dos Espíritos, Q. 1 – Primeira pergunta da obra fundamental do Espiritismo, estabelecendo Deus como causa primária de todas as coisas, sem origem e absoluto.
- Enoque 2:2 – Reflete a ideia da constância dos ciclos celestes (Sol, Lua), entendida na época como prova da ordem divina imutável.
- O Livro dos Espíritos, Q. 617 – Define a lei natural como expressão da vontade divina, fundamento da felicidade humana.
- Enoque – Final do Capítulo 2 – Embora não traga mandamento explícito, sugere implicitamente que o ser humano deve viver em sintonia com a ordem natural.
- O Livro dos Espíritos, Q. 776 – Afirma o progresso como inevitável e parte integrante da condição humana, tanto moral quanto material.
- Revista Espírita, abril de 1864 – Artigo em que Kardec reforça a noção de responsabilidade humana diante dos recursos naturais, contrapondo-se à exploração egoísta.
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