Introdução
A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec,
apresenta a Lei de Causa e Efeito como um dos princípios universais que
regem todas as criaturas e coisas no Universo. Essa lei, também chamada de lei
de ação e reação, está intimamente ligada à evolução espiritual, à reencarnação
e à justiça divina, assegurando que cada ser colha os frutos das próprias
ações, em qualquer tempo ou condição.
Mas a aplicação dessa lei restringe-se apenas ao
ser humano? Ou também envolve os animais, os vegetais e até mesmo as partículas
elementares?
A questão, frequentemente tratada de modo
superficial, adquire relevância ao se considerar que, na visão espírita, todos
os seres fazem parte de um mesmo plano divino de evolução, e que a vida não se
restringe ao reino hominal. A análise que segue busca explorar, à luz das obras
de Allan Kardec e de registros da Revista Espírita, como a lei de causa
e efeito pode ser compreendida na relação com os animais, desmontando preconceitos
e ampliando o entendimento sobre a fraternidade universal.
1. A
visão limitada do homem sobre a criação
Historicamente, o homem colocou-se no centro da criação, atribuindo-se um papel principal e relegando aos outros reinos — mineral, vegetal e animal — funções secundárias ou utilitárias.
Os animais, em particular, foram rotulados de “irracionais”, termo que, segundo
o uso corrente, indicaria ausência total de razão e dependência exclusiva do
instinto. No entanto, observações cotidianas revelam comportamentos nos animais
que indicam memória, aprendizado, escolhas e até formas rudimentares de
raciocínio, algo que Kardec não desconsiderou ao estudar a escala espírita
(O Livro dos Espíritos, questões 592 a 600).
Kardec registra que os animais possuem uma
inteligência limitada e um princípio espiritual, ainda não dotado de
livre-arbítrio pleno, mas que evolui gradualmente. Isso abre espaço para
compreender que eles participam, em seu nível, das mesmas leis universais.
2.
Inteligência, sensibilidade e sofrimento animal
A observação atenta do comportamento animal mostra que muitos indivíduos apresentam traços que se aproximam de capacidades humanas, ainda que em graus rudimentares. Exemplos não faltam: animais que reconhecem pessoas, que aprendem tarefas complexas, que desenvolvem laços afetivos e até que demonstram estratégias para alcançar objetivos.
Negar tais evidências implica manter-se preso a preconceitos antigos.
No plano moral, é importante notar que os animais
também experimentam o sofrimento — físico e, em certo grau, emocional. Como bem
destaca Kardec na Revista Espírita (fevereiro de 1862), “o sofrimento físico é comum a todos os
seres vivos; o sofrimento moral é proporcional ao desenvolvimento intelectual”.
Essa constatação coloca os animais como partícipes de um processo evolutivo,
onde a dor e as circunstâncias de vida contribuem para o adiantamento do
princípio inteligente.
3.
Evolução e a origem espiritual dos seres
O Espiritismo ensina que todos os Espíritos foram
criados simples e ignorantes, iniciando sua jornada em formas de vida
primárias. No Livro dos Espíritos (questões 607 a 610), Kardec expõe que
o princípio espiritual progride através dos diferentes reinos, adquirindo
experiência até atingir a condição humana.
Assim, é plausível considerar que, no passado
remoto, todos nós já atravessamos estágios semelhantes aos que hoje vemos nos
animais. Este entendimento é reforçado em passagens da Revista Espírita
(abril de 1864), onde se admite que o princípio espiritual humano teve origem
em estados anteriores de existência, avançando até a consciência e o
livre-arbítrio.
Essa perspectiva elimina a visão de separação
absoluta entre homem e animal e fundamenta o dever moral de respeito e proteção
a todas as formas de vida.
4. Lei de
Causa e Efeito: também para os animais?
Se a lei de causa e efeito é universal, não há
razão para supor que ela se aplique exclusivamente ao ser humano. Embora os
animais não possuam ainda responsabilidade moral plena — pois lhes falta o
livre-arbítrio completo —, eles estão sujeitos a experiências que moldam e
educam o princípio espiritual que carregam.
O sofrimento que vivenciam pode ter origem em
necessidades evolutivas, funcionando como aprendizado e preparação para
estágios mais complexos. O mesmo se dá com circunstâncias favoráveis, que
também contribuem para a formação de tendências e aptidões.
Na Revista Espírita (agosto de 1863), Kardec
observa que “a justiça divina se estende
a todas as criaturas; nenhuma é excluída de seus benefícios e de suas leis”.
Isso reforça a ideia de que, embora o grau de aplicação varie, a lei é a mesma
para todos.
5.
Considerações finais
À luz da Doutrina Espírita, o conceito de
“irracional” é relativo. Os animais não raciocinam como o homem, mas possuem
formas de inteligência adequadas ao seu estado evolutivo. Estão sujeitos, em
seu nível, à lei de causa e efeito, e seu princípio espiritual progride através
de múltiplas existências.
Reconhecer isso amplia o sentido da fraternidade
universal, integrando o homem e os demais seres vivos num mesmo processo
cósmico de aperfeiçoamento.
Se todos fomos criados por Deus e percorremos a
longa estrada da evolução, respeitar e proteger a vida animal não é apenas uma
questão de compaixão, mas de sintonia com a própria lei divina.
Quadro
comparativo — O tratamento dado aos animais
Natureza do ser:
O
Livro dos Espíritos: Os animais possuem
um princípio inteligente distinto do homem, em desenvolvimento rumo à razão
plena (q. 592-600).
Revista
Espírita: Reconhece-se que os animais têm individualidade
espiritual, ainda sem livre-arbítrio pleno.
Pensamento
científico moderno: Considerados seres sencientes, capazes de sentir
dor e prazer; estudos indicam níveis variados de consciência.
Inteligência:
O Livro dos Espíritos: Inteligência
limitada, mas real, adaptada às necessidades da vida; instinto predominante.
Revista Espírita: Diversos relatos de
comportamentos inteligentes, memória e aprendizado em animais.
Pensamento científico moderno: Etologia
comprova habilidades cognitivas, comunicação e solução de problemas em várias
espécies.
Sofrimento:
O Livro dos Espíritos: Sentem dor
física; não sofrem moralmente como o homem, pois lhes falta reflexão moral.
Revista Espírita: “Sofrimento físico é
comum a todos os seres vivos; sofrimento moral proporcional ao intelecto” (fev.
1862).
Pensamento científico moderno: Comprovada
a capacidade de sofrer física e emocionalmente; algumas espécies demonstram
luto e estresse.
Evolução:
O Livro dos Espíritos: Princípio
espiritual progride pelos reinos até alcançar a humanidade.
Revista Espírita: Sugere que o
princípio espiritual humano já passou por estágios animais.
Pensamento científico moderno: Teoria
da evolução biológica explica parentesco genético e adaptação das espécies.
Lei de Causa e Efeito:
O Livro dos Espíritos: Universal;
aplica-se também aos animais em seu grau de entendimento e progresso.
Revista Espírita: Justiça divina
abrange todos os seres; nenhum é excluído de suas leis (ago. 1863).
Pensamento científico moderno: Reconhece-se
que experiências moldam comportamentos e capacidades; seleção natural atua
sobre todos.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 77ª ed. FEB.
- KARDEC, Allan. A Gênese. FEB.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869). Diversos
artigos sobre os animais e o princípio espiritual.
- IMBASSAHY, Carmen. Irracionais, até onde?
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. FEB.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. FEB.
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