Introdução
A
Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec no século XIX, tem na
mediunidade um dos seus pilares fundamentais. É por meio dela que se estabelece
o intercâmbio entre o mundo espiritual e o mundo corporal, facultando a
transmissão de ensinamentos, consolações e provas da imortalidade da alma.
Longe de ser um privilégio, a mediunidade é uma faculdade natural, inerente
ao ser humano, que se manifesta em diferentes graus e formas, segundo a
disposição orgânica e moral de cada indivíduo.
Este
artigo tem por objetivo apresentar, a partir das obras de Allan Kardec — O
Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o
Espiritismo, A Gênese e a Revista Espírita — uma visão
sistemática da mediunidade, seus tipos e a importância da qualidade moral dos
médiuns.
1. Conceito de Mediunidade
Kardec
define o médium como o intermediário entre os Espíritos e os homens. A
faculdade mediúnica, por sua vez, não é excepcional, mas universal:
“Tout
homme qui sent, à quelque degré que ce soit, l’influence des Esprits, est
médium”1.
(“Todo aquele que sente, em grau qualquer, a influência dos Espíritos, é
médium”).
Assim,
a mediunidade pode variar de uma simples impressão ou intuição até
manifestações ostensivas, como a psicografia ou a vidência.
2. Tipos de Médiuns
Em O
Livro dos Médiuns (2ª parte, cap. XIV), Kardec propõe uma classificação
prática e didática. Não se trata de uma lista exaustiva, mas de exemplos
das principais modalidades observadas.
- Médiuns de efeitos
físicos:
produzem manifestações materiais, como ruídos, movimentos de objetos e
tiptologia.
- Médiuns sensitivos
ou impressionáveis: percebem pela sensação física a presença dos
Espíritos.
- Médiuns audientes: ouvem vozes ou
sons espirituais.
- Médiuns videntes: veem os
Espíritos, em geral de forma fugaz ou permanente.
- Médiuns falantes: transmitem
oralmente as mensagens espirituais, muitas vezes em estado de
semiconsciência.
- Médiuns escreventes
(psicógrafos):
escrevem sob a influência dos Espíritos, seja de forma mecânica,
semimecânica ou intuitiva.
- Médiuns inspirados: recebem
pensamentos ou intuições dos Espíritos, que podem se confundir com seus
próprios.
- Médiuns sonâmbulos: atuam em estado
de sonambulismo natural ou provocado, servindo de instrumento aos
Espíritos.
- Médiuns curadores: transmitem
fluidos salutares, agindo magneticamente sob a assistência espiritual.
- Médiuns de
pressentimento: percebem, de modo vago ou claro,
acontecimentos futuros.
- Médiuns artísticos: poetas, músicos,
pintores ou desenhistas que recebem inspiração ou execução mediúnica.
- Médiuns poliglotas: falam ou escrevem
em línguas desconhecidas por eles (xenoglossia).
É
importante destacar que um mesmo indivíduo pode reunir várias dessas
modalidades em diferentes graus de intensidade.
3. Qualidade Moral e Intelectual dos Médiuns
A
faculdade mediúnica é orgânica e neutra, mas a qualidade das
comunicações depende da condição moral do médium e da influência que exerce
sobre os Espíritos que atrai.
Kardec
sintetiza:
“La
faculté médianimique est indépendante des qualités morales du médium; mais ces
qualités ont une grande influence sur l’usage qu’il en fait”2.
(“A faculdade mediúnica é independente das qualidades morais do médium; mas
estas têm grande influência sobre o uso que ele faz da faculdade”).
Assim,
o médium pode ser:
- Imperfeito, quando dominado
pelo orgulho, vaidade, egoísmo, interesse material ou pela influência de
Espíritos inferiores.
- Bom médium, quando busca a
humildade, o desinteresse, a sinceridade e coloca a faculdade a serviço do
bem.
Kardec
compara o médium a um instrumento musical: pode ser mais ou menos
afinado, mas precisa de educação e disciplina para ser útil.
4. A Missão dos Médiuns
A
mediunidade, segundo Kardec, não deve ser utilizada para satisfazer
curiosidades ou interesses materiais, mas para instruir e consolar. Em O
Livro dos Médiuns, ele adverte:
“Les
médiums sont les interprètes des Esprits; ils ne font qu’exprimer la pensée de
ceux qui les assistent”3.
(“Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos; eles apenas expressam o
pensamento daqueles que os assistem”).
A
missão do médium é, portanto, moral: contribuir para o progresso espiritual da
humanidade, servindo de canal para os ensinamentos elevados.
5. A Mediunidade nas Diversas Obras da Codificação
- O Livro dos
Espíritos
(1857): introduz a ideia da influência espiritual no pensamento humano
(questões 459, 518-525).
- O Livro dos Médiuns (1861): trata
sistematicamente da prática mediúnica, tipos de médiuns, qualidades,
perigos e educação da faculdade.
- O Evangelho segundo
o Espiritismo
(1864): exorta os médiuns a não ocultarem a “candeia” (cap. XXIV, item
11), lembrando sua responsabilidade moral.
- A Gênese (1868): explica a
base fluídica das manifestações e a mediunidade de cura (cap. XIV), além
de analisar os fenômenos atribuídos a Jesus como manifestações superiores
da lei mediúnica (cap. XV).
- Revista Espírita (1858-1869):
apresenta inúmeros relatos práticos de médiuns e comunicações, entre eles
o célebre caso da Srta. Júlia (dez. 1863 e jan. 1864), estudado por Kardec
como exemplo de possessão espiritual4.
Conclusão
O
estudo da mediunidade, conforme apresentado por Allan Kardec, revela a
amplitude e diversidade dessa faculdade humana. A classificação dos tipos de
médiuns auxilia na compreensão prática, mas a essência do problema está na
qualidade moral daquele que a exerce. A mediunidade, neutra em si mesma, pode
ser instrumento de progresso ou de engano, conforme o uso que dela se faça.
Assim,
a Doutrina Espírita convida a uma educação mediúnica responsável,
baseada no estudo, na disciplina e, sobretudo, na transformação íntima, para
que a faculdade se torne instrumento de esclarecimento, consolo e caridade.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. FEB, várias edições.
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Médiuns. Trad. de Guillon Ribeiro. FEB, várias edições.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. de Guillon Ribeiro. FEB, várias
edições.
- KARDEC, Allan. A
Gênese. Trad. de Guillon Ribeiro. FEB, várias edições.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos (1858-1869). Diversos
volumes.
Notas de Rodapé
- KARDEC, Allan. Le Livre des Médiums. 2e partie, chap. XIV, item 159. ↩
- KARDEC, Allan. Le Livre des Médiums. 2e partie, chap. XX, item 227. ↩
- KARDEC, Allan. L’Évangile selon le Spiritisme. Chap. XXIV, item 11. ↩
- KARDEC, Allan. Revue Spirite. Décembre 1863, p. 373-381; Janvier 1864, p. 1-13. No caso da Srta. Júlia, Kardec observa: “Nous avons sous les yeux un exemple frappant de la possession proprement dite” (“Temos sob os olhos um exemplo notável da possessão propriamente dita”). ↩
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