Introdução
Em nossa linguagem cotidiana, certas palavras são
frequentemente usadas de forma pejorativa ou limitadora. Termos como radical,
fundamental (ou fundamentalista), ortodoxo e dogma
costumam estar associados a rigidez, intolerância ou extremismo. No entanto,
quando investigamos sua etimologia e seu sentido original, descobrimos que cada
uma delas carrega um significado muito mais profundo, construtivo e até
positivo, com exceção de dogma, que ocupa uma posição ambígua entre o
valor de princípio estabelecido e o risco de imobilismo.
A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec,
nos oferece ferramentas racionais para compreender essas distorções semânticas,
pois foi estruturada sobre bases sólidas de método científico, filosofia e
moral evangélica. Em O Livro dos Espíritos e na Revista Espírita,
Kardec sempre recomendou que o Espiritismo fosse analisado com prudência e
clareza, evitando fanatismos, mas também reconhecendo a importância de
fundamentos, raízes e correção de princípios.
Neste artigo, analisaremos cada termo à luz de sua
origem e refletiremos sobre como o Espiritismo nos ajuda a ressignificar essas
palavras, resgatando seu valor positivo.
Radical:
o retorno às raízes
O termo radical provém do latim radix,
que significa "raiz". Seu uso original indica aquilo que toca o
essencial, o que vai à base de algo. Na matemática, por exemplo, o radical
indica a raiz de um número; na política, designava reformas que atingissem a
base do sistema.
Hoje, no entanto, ser chamado de
"radical" muitas vezes equivale a ser acusado de fanatismo ou de
intransigência. Kardec, entretanto, lembrava que o progresso verdadeiro exige
que voltemos às raízes da moral e da verdade. Em A Gênese (cap. I, item
55), ele afirma que o Espiritismo é “radical” no sentido de buscar as causas fundamentais
da vida e da alma, indo além das aparências. Assim, o radicalismo, entendido
como retorno às origens essenciais, é positivo, pois permite reencontrar a base
espiritual da existência.
Fundamental:
o alicerce necessário
Fundamental deriva de fundamentum, ou
seja, “base”, “alicerce”. Algo fundamental é indispensável, primordial, aquilo
que sustenta uma construção. O problema surge quando se fala em
“fundamentalismo”, termo que passou a designar posturas inflexíveis e
intolerantes.
No entanto, sem fundamentos, não há edificação
sólida. Kardec enfatizou que a Doutrina Espírita repousa em fundamentos
racionais e experimentais: “A fé
verdadeira só é inabalável quando pode encarar a razão, face a face, em todas
as épocas da humanidade” (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap.
XIX, item 7).
Portanto, o Espiritismo não recusa o caráter fundamental
das verdades que o sustentam, mas rejeita o fundamentalismo cego, que
fecha as portas ao diálogo e à evolução.
Ortodoxo:
a reta opinião
Do grego orthos (reto, correto) e doxa
(opinião, fé), ortodoxo significa originalmente “aquele que tem a opinião correta”. O termo foi amplamente usado na
religião para indicar fidelidade a um corpo de doutrinas.
Com o tempo, porém, passou a ser associado a
conservadorismo rígido. Kardec, em sua metodologia, não rejeitava a busca pela
verdade correta (orthos), mas advertia contra a cristalização de ideias.
Na Revista Espírita (fev. 1868), explica que “o Espiritismo marcha com a ciência”, o que significa que a
“opinião correta” não é algo parado, mas o resultado de uma constante
aproximação da verdade.
Assim, a ortodoxia, entendida como busca da
correção e da retidão, é valiosa, desde que não se transforme em obstáculo ao
progresso espiritual e intelectual.
Dogma:
entre o princípio e o imobilismo
O termo dogma vem do grego dógma, que
significava “opinião estabelecida” ou
“princípio considerado válido”. Nos
filósofos antigos, tinha um valor positivo: o dogma era uma síntese da
sabedoria alcançada pela razão e experiência.
No entanto, no campo religioso, o termo assumiu o
sentido de verdade absoluta, inquestionável e obrigatória. Nesse aspecto,
Kardec foi crítico: “A religião que se
apoia sobre dogmas ininteligíveis é como uma casa edificada sobre a areia: o
menor sopro da ciência a derruba” (Revista Espírita, jan. 1861).
Assim, o dogma pode ter uma face positiva, quando
entendido como princípio de fé que guia a vida moral, mas se torna negativo
quando é imposto como barreira ao raciocínio e à liberdade de consciência.
Conclusão
As palavras possuem história, e muitas vezes sua
deturpação reflete os desvios do pensamento humano. Radical, fundamental
e ortodoxo nasceram como expressões ligadas à raiz, ao alicerce e à
retidão — conceitos profundamente construtivos. Já dogma, embora
originado de um princípio neutro ou positivo, adquiriu sentidos ambíguos,
oscilando entre guia e prisão do pensamento.
A Doutrina Espírita nos convida a retomar o sentido
saudável desses termos: ser radical na busca das raízes espirituais;
reconhecer o que é fundamental para o progresso moral; ser ortodoxo
no esforço de seguir a verdade reta, mas sem fechar-se à evolução; e distinguir
entre princípios que iluminam e dogmas que aprisionam.
Assim, encontramos no Espiritismo uma chave de
equilíbrio entre firmeza e progresso, entre fundamento e liberdade, entre raiz
e crescimento, sempre iluminados pelo critério da razão e da moral evangélica.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869). Diversos
volumes.
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1859.
- DENIS, Léon. O Problema do Ser e do Destino. CELD, 2011.
- PIRES, J. Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo.
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