terça-feira, 26 de agosto de 2025

ENTRE FUNDAMENTOS, RAÍZES E DOGMAS: 
O SENTIDO ORIGINAL DAS PALAVRAS E A VISÃO ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

Introdução

Em nossa linguagem cotidiana, certas palavras são frequentemente usadas de forma pejorativa ou limitadora. Termos como radical, fundamental (ou fundamentalista), ortodoxo e dogma costumam estar associados a rigidez, intolerância ou extremismo. No entanto, quando investigamos sua etimologia e seu sentido original, descobrimos que cada uma delas carrega um significado muito mais profundo, construtivo e até positivo, com exceção de dogma, que ocupa uma posição ambígua entre o valor de princípio estabelecido e o risco de imobilismo.

A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec, nos oferece ferramentas racionais para compreender essas distorções semânticas, pois foi estruturada sobre bases sólidas de método científico, filosofia e moral evangélica. Em O Livro dos Espíritos e na Revista Espírita, Kardec sempre recomendou que o Espiritismo fosse analisado com prudência e clareza, evitando fanatismos, mas também reconhecendo a importância de fundamentos, raízes e correção de princípios.

Neste artigo, analisaremos cada termo à luz de sua origem e refletiremos sobre como o Espiritismo nos ajuda a ressignificar essas palavras, resgatando seu valor positivo.

Radical: o retorno às raízes

O termo radical provém do latim radix, que significa "raiz". Seu uso original indica aquilo que toca o essencial, o que vai à base de algo. Na matemática, por exemplo, o radical indica a raiz de um número; na política, designava reformas que atingissem a base do sistema.

Hoje, no entanto, ser chamado de "radical" muitas vezes equivale a ser acusado de fanatismo ou de intransigência. Kardec, entretanto, lembrava que o progresso verdadeiro exige que voltemos às raízes da moral e da verdade. Em A Gênese (cap. I, item 55), ele afirma que o Espiritismo é “radical” no sentido de buscar as causas fundamentais da vida e da alma, indo além das aparências. Assim, o radicalismo, entendido como retorno às origens essenciais, é positivo, pois permite reencontrar a base espiritual da existência.

Fundamental: o alicerce necessário

Fundamental deriva de fundamentum, ou seja, “base”, “alicerce”. Algo fundamental é indispensável, primordial, aquilo que sustenta uma construção. O problema surge quando se fala em “fundamentalismo”, termo que passou a designar posturas inflexíveis e intolerantes.

No entanto, sem fundamentos, não há edificação sólida. Kardec enfatizou que a Doutrina Espírita repousa em fundamentos racionais e experimentais: “A fé verdadeira só é inabalável quando pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade” (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIX, item 7).

Portanto, o Espiritismo não recusa o caráter fundamental das verdades que o sustentam, mas rejeita o fundamentalismo cego, que fecha as portas ao diálogo e à evolução.

Ortodoxo: a reta opinião

Do grego orthos (reto, correto) e doxa (opinião, fé), ortodoxo significa originalmente “aquele que tem a opinião correta”. O termo foi amplamente usado na religião para indicar fidelidade a um corpo de doutrinas.

Com o tempo, porém, passou a ser associado a conservadorismo rígido. Kardec, em sua metodologia, não rejeitava a busca pela verdade correta (orthos), mas advertia contra a cristalização de ideias. Na Revista Espírita (fev. 1868), explica que “o Espiritismo marcha com a ciência”, o que significa que a “opinião correta” não é algo parado, mas o resultado de uma constante aproximação da verdade.

Assim, a ortodoxia, entendida como busca da correção e da retidão, é valiosa, desde que não se transforme em obstáculo ao progresso espiritual e intelectual.

Dogma: entre o princípio e o imobilismo

O termo dogma vem do grego dógma, que significava “opinião estabelecida” ou “princípio considerado válido”. Nos filósofos antigos, tinha um valor positivo: o dogma era uma síntese da sabedoria alcançada pela razão e experiência.

No entanto, no campo religioso, o termo assumiu o sentido de verdade absoluta, inquestionável e obrigatória. Nesse aspecto, Kardec foi crítico: “A religião que se apoia sobre dogmas ininteligíveis é como uma casa edificada sobre a areia: o menor sopro da ciência a derruba” (Revista Espírita, jan. 1861).

Assim, o dogma pode ter uma face positiva, quando entendido como princípio de fé que guia a vida moral, mas se torna negativo quando é imposto como barreira ao raciocínio e à liberdade de consciência.

Conclusão

As palavras possuem história, e muitas vezes sua deturpação reflete os desvios do pensamento humano. Radical, fundamental e ortodoxo nasceram como expressões ligadas à raiz, ao alicerce e à retidão — conceitos profundamente construtivos. Já dogma, embora originado de um princípio neutro ou positivo, adquiriu sentidos ambíguos, oscilando entre guia e prisão do pensamento.

A Doutrina Espírita nos convida a retomar o sentido saudável desses termos: ser radical na busca das raízes espirituais; reconhecer o que é fundamental para o progresso moral; ser ortodoxo no esforço de seguir a verdade reta, mas sem fechar-se à evolução; e distinguir entre princípios que iluminam e dogmas que aprisionam.

Assim, encontramos no Espiritismo uma chave de equilíbrio entre firmeza e progresso, entre fundamento e liberdade, entre raiz e crescimento, sempre iluminados pelo critério da razão e da moral evangélica.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869). Diversos volumes.
  • KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1859.
  • DENIS, Léon. O Problema do Ser e do DestinoCELD, 2011.
  • PIRES, J. Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo.

 

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