1. Introdução
O
século XIX testemunhou o surgimento do Espiritismo, com Allan Kardec
(1804-1869) à frente da codificação de uma doutrina que se pretendia
científica, filosófica e moral. Entre suas obras fundamentais estão O Livro
dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho
segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese
(1868).
No
mesmo período, o advogado francês Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879)
publicou, em 1866, Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação, obra
de 1.864 páginas ditada por via mediúnica, por intermédio de Mme. Collignon.
Pretendia-se uma interpretação integral e comentada dos Evangelhos, apresentada
como revelação espiritual sob a direção do evangelista João.
A
publicação causou forte impacto no meio espírita, sobretudo pelo caráter
grandioso que se atribuía à obra. A própria Revista Espírita, em junho
de 1866, trouxe uma nota sobre o lançamento, na seção Notícias
Bibliográficas, comentando:
“A obra é volumosa,
contém quase duas mil páginas; mas é preciso dizer que ocupa o lugar de uma
multidão de obras fragmentárias, e que, na opinião de todos os que a leram, ela
encerra uma quantidade de ideias novas, dignas de fixar a atenção dos
espíritas.”
Apesar
da atenção dada, Kardec manteve-se prudente e crítico, ressaltando a
necessidade de análise séria e da aplicação do Controle Universal do Ensino
dos Espíritos (CUEE) antes de se tomar qualquer produção mediúnica como
parte integrante da Doutrina.
2. Concepção Doutrinária
Allan Kardec
- Codificou o
Espiritismo em três pilares: ciência, filosofia e moral cristã.
- Definiu o CUEE
como critério de validação doutrinária, evitando revelações isoladas.
- Defendeu a primazia
da razão, da análise crítica e do método comparativo.
- Enfatizou que o
Espiritismo não cria dogmas, mas se abre ao progresso e à universalidade.
Jean-Baptiste Roustaing
- Apresentou Os
Quatro Evangelhos como a “Revelação da Revelação”, ou seja,
complemento indispensável à obra de Kardec.
- Introduziu forte
teor místico e teológico, aproximando-se de interpretações dogmáticas.
- Baseou-se em um
único médium, sem a metodologia do CUEE.
- Propôs explicações
minuciosas de passagens evangélicas, incluindo milagres, sob prisma
sobrenaturalizado.
3. Pontos de Divergência
3.1. A Natureza de Jesus
·
Kardec: Jesus é o Espírito mais elevado da Terra, modelo
e guia da humanidade; encarnou-se realmente em corpo humano, submetendo-se às
leis naturais.
·
Roustaing: Jesus possuía corpo fluídico (teoria docetista),
apenas aparente, não sujeito ao sofrimento, nem à crucificação real.
Essa diferença é fundamental, pois afasta Roustaing
da concepção racional de Kardec.
3.2. Papel da Obra
·
Kardec: O Espiritismo é progressivo, aberto à razão e ao
exame universal dos Espíritos. Nenhuma revelação particular pode ser imposta
como absoluta.
·
Roustaing: Os Quatro Evangelhos seriam revelação
definitiva, necessária ao entendimento completo do Espiritismo.
3.3. Metodologia
·
Kardec: Base no Controle Universal, envolvendo
médiuns de várias regiões e épocas.
·
Roustaing: Comunicação por um único médium, sem confrontação
ampla de mensagens.
3.4. Interpretação do Evangelho
·
Kardec: Destacou os ensinamentos morais, essenciais e
universais, evitando interpretações literais.
·
Roustaing: Comentou exaustivamente os Evangelhos,
sustentando explicações sobrenaturalistas e detalhadas.
4. Pontos de Convergência
- Ambos reconhecem
Jesus como guia espiritual da humanidade.
- Ambos valorizam a
moral evangélica como núcleo do Espiritismo.
- Ambos defendem a
reencarnação, a imortalidade da alma e a vida futura.
- Ambos situam o
Espiritismo como revelação espiritual para a humanidade.
5. A Nota da Revista Espírita (junho de 1866)
Na
seção Notícias Bibliográficas, Kardec registrou a obra de Roustaing com
respeito, destacando a amplitude do trabalho e o interesse de ideias novas.
Contudo, chamou a atenção para a necessidade de estudo:
- Ressaltou que, pela
extensão e natureza da obra, seria impossível emitir juízo definitivo em
poucas linhas.
- Recomendou aos
leitores que examinassem por si mesmos, aplicando os critérios da Doutrina
Espírita.
- Não confirmou a
obra como complementar à codificação, mas como um trabalho a ser analisado
com prudência.
Essa
postura confirma a coerência de Kardec com seu método: não rejeitou nem
endossou de pronto, mas indicou o exame racional e coletivo como caminho
seguro.
6. Repercussões Históricas
- Os Quatro
Evangelhos
repercutiram fortemente no Brasil, onde encontraram apoio da Federação
Espírita Brasileira (FEB), que os publicou e divulgou.
- O movimento
espírita dividiu-se entre “kardecistas” e “roustainguistas”.
- Muitos estudiosos
apontaram incompatibilidade entre os dois corpos doutrinários,
especialmente pela tese do corpo fluídico de Jesus.
- Kardec, em A
Gênese (1868), reafirmou a plena humanidade de Jesus, afastando-se
implicitamente das teses roustainguistas.
7. Conclusão
O
estudo mostra que, enquanto Allan Kardec consolidou o Espiritismo com método
científico, filosófico e universal, Jean-Baptiste Roustaing propôs uma
interpretação mística e teológica dos Evangelhos.
A
análise da Revista Espírita (junho de 1866) evidencia a postura prudente
de Kardec: reconheceu a importância da obra como fenômeno literário e
espiritual, mas sem validá-la como complemento à codificação.
Assim,
a Doutrina Espírita, fiel ao método espírita, permanece fundamentada na razão e
no Controle Universal do Ensino dos Espíritos, enquanto Os Quatro Evangelhos
representam uma corrente paralela, cuja aceitação ou rejeição cabe ao
discernimento individual.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. Paris, 1857.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho segundo o Espiritismo. Paris, 1864.
- KARDEC, Allan. A
Gênese. Paris, 1868.
- KARDEC, Allan. Obras
Póstumas. Paris, 1890 (póstuma).
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita. Junho de 1866, “Notícias Bibliográficas – Os Evangelhos
explicados, pelo Sr. Roustaing”.
- ROUSTAING,
Jean-Baptiste. Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação.
Bordeaux, 1866.
- WANTUIL, Zeus;
THIESEN, Francisco. Allan Kardec: O Educador e o Codificador. FEB.
- FIGUEIREDO, Paulo
Henrique de. Revolução Espírita.
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