terça-feira, 19 de agosto de 2025

ESTUDO COMPARATIVO: OS QUATRO EVANGELHOS
DE JEAN-BAPTISTE ROUSTAING
E A DOUTRINA ESPÍRITA
CODIFICADA POR ALLAN KARDEC
- A Era do Espírito -

1. Introdução

O século XIX testemunhou o surgimento do Espiritismo, com Allan Kardec (1804-1869) à frente da codificação de uma doutrina que se pretendia científica, filosófica e moral. Entre suas obras fundamentais estão O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868).

No mesmo período, o advogado francês Jean-Baptiste Roustaing (1805-1879) publicou, em 1866, Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação, obra de 1.864 páginas ditada por via mediúnica, por intermédio de Mme. Collignon. Pretendia-se uma interpretação integral e comentada dos Evangelhos, apresentada como revelação espiritual sob a direção do evangelista João.

A publicação causou forte impacto no meio espírita, sobretudo pelo caráter grandioso que se atribuía à obra. A própria Revista Espírita, em junho de 1866, trouxe uma nota sobre o lançamento, na seção Notícias Bibliográficas, comentando:

“A obra é volumosa, contém quase duas mil páginas; mas é preciso dizer que ocupa o lugar de uma multidão de obras fragmentárias, e que, na opinião de todos os que a leram, ela encerra uma quantidade de ideias novas, dignas de fixar a atenção dos espíritas.”

Apesar da atenção dada, Kardec manteve-se prudente e crítico, ressaltando a necessidade de análise séria e da aplicação do Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE) antes de se tomar qualquer produção mediúnica como parte integrante da Doutrina.

2. Concepção Doutrinária

Allan Kardec

  • Codificou o Espiritismo em três pilares: ciência, filosofia e moral cristã.
  • Definiu o CUEE como critério de validação doutrinária, evitando revelações isoladas.
  • Defendeu a primazia da razão, da análise crítica e do método comparativo.
  • Enfatizou que o Espiritismo não cria dogmas, mas se abre ao progresso e à universalidade.

Jean-Baptiste Roustaing

  • Apresentou Os Quatro Evangelhos como a “Revelação da Revelação”, ou seja, complemento indispensável à obra de Kardec.
  • Introduziu forte teor místico e teológico, aproximando-se de interpretações dogmáticas.
  • Baseou-se em um único médium, sem a metodologia do CUEE.
  • Propôs explicações minuciosas de passagens evangélicas, incluindo milagres, sob prisma sobrenaturalizado.

3. Pontos de Divergência

3.1. A Natureza de Jesus

·         Kardec: Jesus é o Espírito mais elevado da Terra, modelo e guia da humanidade; encarnou-se realmente em corpo humano, submetendo-se às leis naturais.

·         Roustaing: Jesus possuía corpo fluídico (teoria docetista), apenas aparente, não sujeito ao sofrimento, nem à crucificação real.

Essa diferença é fundamental, pois afasta Roustaing da concepção racional de Kardec.

3.2. Papel da Obra

·         Kardec: O Espiritismo é progressivo, aberto à razão e ao exame universal dos Espíritos. Nenhuma revelação particular pode ser imposta como absoluta.

·         Roustaing: Os Quatro Evangelhos seriam revelação definitiva, necessária ao entendimento completo do Espiritismo.

3.3. Metodologia

·         Kardec: Base no Controle Universal, envolvendo médiuns de várias regiões e épocas.

·         Roustaing: Comunicação por um único médium, sem confrontação ampla de mensagens.

3.4. Interpretação do Evangelho

·         Kardec: Destacou os ensinamentos morais, essenciais e universais, evitando interpretações literais.

·         Roustaing: Comentou exaustivamente os Evangelhos, sustentando explicações sobrenaturalistas e detalhadas.

4. Pontos de Convergência

  • Ambos reconhecem Jesus como guia espiritual da humanidade.
  • Ambos valorizam a moral evangélica como núcleo do Espiritismo.
  • Ambos defendem a reencarnação, a imortalidade da alma e a vida futura.
  • Ambos situam o Espiritismo como revelação espiritual para a humanidade.

5. A Nota da Revista Espírita (junho de 1866)

Na seção Notícias Bibliográficas, Kardec registrou a obra de Roustaing com respeito, destacando a amplitude do trabalho e o interesse de ideias novas. Contudo, chamou a atenção para a necessidade de estudo:

  • Ressaltou que, pela extensão e natureza da obra, seria impossível emitir juízo definitivo em poucas linhas.
  • Recomendou aos leitores que examinassem por si mesmos, aplicando os critérios da Doutrina Espírita.
  • Não confirmou a obra como complementar à codificação, mas como um trabalho a ser analisado com prudência.

Essa postura confirma a coerência de Kardec com seu método: não rejeitou nem endossou de pronto, mas indicou o exame racional e coletivo como caminho seguro.

6. Repercussões Históricas

  • Os Quatro Evangelhos repercutiram fortemente no Brasil, onde encontraram apoio da Federação Espírita Brasileira (FEB), que os publicou e divulgou.
  • O movimento espírita dividiu-se entre “kardecistas” e “roustainguistas”.
  • Muitos estudiosos apontaram incompatibilidade entre os dois corpos doutrinários, especialmente pela tese do corpo fluídico de Jesus.
  • Kardec, em A Gênese (1868), reafirmou a plena humanidade de Jesus, afastando-se implicitamente das teses roustainguistas.

7. Conclusão

O estudo mostra que, enquanto Allan Kardec consolidou o Espiritismo com método científico, filosófico e universal, Jean-Baptiste Roustaing propôs uma interpretação mística e teológica dos Evangelhos.

A análise da Revista Espírita (junho de 1866) evidencia a postura prudente de Kardec: reconheceu a importância da obra como fenômeno literário e espiritual, mas sem validá-la como complemento à codificação.

Assim, a Doutrina Espírita, fiel ao método espírita, permanece fundamentada na razão e no Controle Universal do Ensino dos Espíritos, enquanto Os Quatro Evangelhos representam uma corrente paralela, cuja aceitação ou rejeição cabe ao discernimento individual.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Paris, 1857.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Paris, 1864.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. Paris, 1868.
  • KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Paris, 1890 (póstuma).
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita. Junho de 1866, “Notícias Bibliográficas – Os Evangelhos explicados, pelo Sr. Roustaing”.
  • ROUSTAING, Jean-Baptiste. Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação. Bordeaux, 1866.
  • WANTUIL, Zeus; THIESEN, Francisco. Allan Kardec: O Educador e o Codificador. FEB.
  • FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Revolução Espírita.

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