Introdução
O Espiritismo, codificado por Allan Kardec a partir
dos ensinos dos Espíritos superiores, nasceu sob o signo da liberdade de
pensamento, mas de uma liberdade que não se confunde com licença irrestrita. A
liberdade espírita é guiada pela razão, pelo método e pelo compromisso com a
verdade devidamente verificada. Kardec estabeleceu, de forma explícita, que o
progresso doutrinário se processa mediante critérios racionais e coletivos —
como o Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos — para preservar a
unidade e a clareza da Doutrina.
Desde os primórdios, advertiu-se sobre a
importância de evitarmos personalismos, revelações isoladas e a introdução de
ideias que não guardem coerência com o corpo doutrinário. Essa advertência não
era teórica: ao longo de toda a Revista Espírita (1858-1869), o
Codificador comenta casos concretos de comunicações que, embora belas em
aparência, traziam equívocos ou interpretações apressadas, assim como
tentativas de alterar a essência do ensino espírita. Seu método consistia em submeter
tudo ao crivo da universalidade e da lógica, jamais aceitando uma afirmação
apenas pela autoridade de quem a proferia.
Ainda assim, a experiência histórica demonstra que
nem sempre o Movimento Espírita seguiu esses princípios. Em diversas épocas, surgiram
teses e notícias sem fundamento, que, se não analisadas com cuidado, podem
gerar confusão e desvio de foco.
A
liberdade com método e a orientação de Kardec
Allan Kardec deixou instruções claras sobre o papel
da organização doutrinária e sobre a maneira de acolher novas revelações. Em Obras
Póstumas e na Revista Espírita, mostrou que a liberdade de pensar
não dá direito de transformar o Espiritismo conforme preferências pessoais. A
Doutrina é obra coletiva dos Espíritos superiores, e a função dos encarnados é
estudá-la, compará-la, analisá-la e aplicá-la, mantendo o vínculo com seus
fundamentos originais.
Entre esses fundamentos, destaca-se o Controle
Universal dos Ensinos dos Espíritos, mecanismo segundo o qual nenhum novo
ponto doutrinário pode ser incorporado sem a concordância espontânea e
simultânea de comunicações recebidas, em diferentes lugares, por médiuns
diversos, estranhos uns aos outros, e com perfeita identidade de conteúdo. Tal
critério protege o Movimento Espírita da influência de comunicações isoladas e
assegura que qualquer avanço se dê com segurança e coerência.
Personalismo
e excesso de exaltação no meio espírita
A elevação de figuras humanas à condição de
autoridades doutrinárias absolutas não se harmoniza com o método espírita.
Kardec nunca se colocou acima da Doutrina; ao contrário, pedia para ser
reconhecido apenas como o organizador e codificador.
O caso de Francisco Cândido Xavier ilustra bem a
importância de mantermos equilíbrio. Chico Xavier desempenhou papel de grande
relevância como médium e divulgador, conquistando multidões pelo exemplo de
humildade e pela beleza moral de suas obras. Entretanto, isso não o coloca —
nem a qualquer outro médium — acima das regras estabelecidas pelos Espíritos
superiores e por Kardec.
Ao contrário do Codificador, que trabalhava em
plena autonomia intelectual, Chico se submeteu inteiramente à orientação de
seus guias espirituais e evitou polêmicas. Sua produção literária, embora
valiosa, não foi submetida ao Controle Universal dos Espíritos, sendo,
portanto, do ponto de vista metodológico, obra subsidiária, e não complemento
oficial da Doutrina.
Atribuir-lhe títulos como “reencarnação de Allan
Kardec” ou mesmo “de Platão” carece de base sólida e representa exatamente o
tipo de interpretação apressada que Kardec nos aconselhou a evitar. A aceitação
irrefletida dessas ideias pode abrir espaço à fascinação espiritual e
afastar-nos do estudo sério e criterioso que o Espiritismo requer.
As
consequências da substituição da Codificação por obras acessórias
Outra prática que merece reflexão é a substituição
sistemática do estudo das obras fundamentais — O Livro dos Espíritos, O
Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, A Gênese,
O Céu e o Inferno — por livros de autores ou médiuns contemporâneos.
Embora muitas vezes bem-intencionada, essa substituição pode enfraquecer a
formação doutrinária e deixar grupos espíritas mais suscetíveis a ideias menos
fundamentadas.
Kardec foi categórico: o alicerce do Espiritismo é
a Codificação. As obras complementares podem auxiliar na compreensão, mas não
devem substituí-la. Em Revista Espírita, agosto de 1861, afirma: “Quando uma teoria nova é apresentada, deve
ser examinada com todo o cuidado; se for falsa, cedo ou tarde cairá por si
mesma; se for verdadeira, triunfará pela força dos fatos.” Essa postura,
prudente e lógica, é uma salvaguarda essencial para o movimento espírita.
Reconhecer
Kardec pela obra, não por suposições
Se Allan Kardec houver de reencarnar, será
reconhecido não por relatos isolados ou mensagens vagas, mas pela coerência e
pelo rigor de sua obra. Certamente retomaria a aplicação do método que
estruturou, sem jamais contradizer as orientações que recebeu dos Espíritos
superiores.
Enquanto isso, cabe a todos nós cultivar o bom
senso doutrinário, evitando interpretações apressadas e narrativas que possam
expor o Espiritismo ao ridículo. O bom senso não é apego cego ao passado, mas
compromisso lúcido com a razão, com a universalidade e com o progresso seguro
do conhecimento espiritual.
Conclusão
O Espiritismo cumprirá sua missão se mantiver viva
a metodologia que lhe deu origem: a investigação séria, a comparação criteriosa
e a submissão de qualquer novo ensinamento ao Controle Universal dos Ensinos
dos Espíritos. O excesso de exaltação a personalidades, o personalismo e a
substituição das obras básicas por literatura acessória são desvios que
fragilizam o estudo e a vivência da Doutrina.
Allan Kardec, na Revista Espírita de maio de
1864, escreveu: “É melhor repelir dez
verdades do que admitir uma só mentira, uma só teoria falsa.” Mais de um
século e meio depois, essa máxima permanece como guia seguro — não para nos
tornarmos inflexíveis, mas para caminharmos com prudência e discernimento, em
espírito de fraternidade e busca sincera pela verdade.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1ª ed. 1857.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1ª ed. 1861.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 1ª ed.
1864.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1ª ed. 1868.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 1ª ed. 1890.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita, 1858-1869. Diversos
números.
- PIRES, José Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo. São
Paulo: Paideia, 1977.
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