Introdução
A Gênese,
os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo é uma das obras fundamentais da
Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, publicada originalmente em 1868.
Assim como os demais componentes da codificação (1857-1869), constitui base
doutrinária essencial, alicerçada nos ensinamentos dos Espíritos e nas análises
da Revista Espírita. Entretanto, há mais de um século estende-se uma
controvérsia quanto às diferenças textuais entre as primeiras quatro edições,
publicadas em vida de Kardec, e a quinta edição, que surgiu posteriormente com
o subtítulo “revista, corrigida e ampliada”. Este artigo busca apresentar os
dados históricos mais confiáveis, confrontar as evidências e refletir sobre em
que medida as alterações apontadas comprometem o legado moral e intelectual de
Allan Kardec.
História Editorial
Publicado em vida de Allan Kardec
A primeira edição de A Gênese foi lançada em
Paris em janeiro de 1868. Até a desencarnação de Kardec, em 31 de março de
1869, foram publicadas quatro edições idênticas entre si em conteúdo, sem
modificações significativas de doutrina ou forma.
A quinta edição “revisada,
corrigida e ampliada”
A quinta edição, datada em registros de dezembro de
1872, surge com o subtítulo “revista, corrigida e ampliada”. Diferentemente das
quatro primeiras, apresenta alterações de ordem estrutural e textual:
supressões, acréscimos, mudanças em frases, renumeração de itens e inclusão de
notas de rodapé. Esses elementos geraram a polêmica que perdura até hoje.
As Alegações de Adulteração
O
primeiro a denunciar publicamente as diferenças foi Henri Sausse,
biógrafo de Kardec. Em 1884, ele publicou no periódico Le Spiritisme o
artigo “Une infamie”, no qual relatava ter comparado sua cópia da primeira
edição de 1868 com a quinta edição e encontrado 126 passagens alteradas — entre
modificações, acréscimos e supressões.
Estudos
recentes, como os da pesquisadora Simoni Privato Goidanich, no livro O
Legado de Allan Kardec, e de equipes como o ECK (Espiritismo Com Kardec) e
o Grupo de Estudos Chico Xavier, confirmam e ampliam a lista de diferenças.
Estima-se que capítulos inteiros, como o XVIII (Os tempos são chegados),
tenham sido profundamente modificados, com dezenas de alterações, supressões de
parágrafos e introdução de notas não atribuíveis ao Codificador.
Contrapontos e Defesas da Autenticidade
Apesar
das denúncias de adulteração, alguns pesquisadores defendem que Allan Kardec
poderia ter deixado rascunhos ou revisões que justificassem as mudanças encontradas
na edição de 1872. Argumenta-se que não há provas conclusivas de má-fé ou
manipulação doutrinária intencional.
Pesquisas
tipográficas em exemplares originais franceses atestam que as quatro primeiras
edições são idênticas entre si, reforçando a autenticidade desse conjunto.
Entretanto, a 5ª edição permanece controversa: publicada após a morte de
Kardec, não há documento que comprove sua autorização expressa.
Em 2018,
a Fundação Espírita André Luiz (FEAL) lançou uma edição baseada na 1ª
edição de 1868, considerada “sem adulterações”, buscando garantir aos leitores
e estudiosos acesso ao texto conforme publicado pelo Codificador em vida.
Dados Verificados Recentemente
- Exemplares originais
preservados na Biblioteca Nacional da França (BNF) e nos Arquivos
Nacionais confirmam que as quatro primeiras edições (1868 e início de
1869) são idênticas em conteúdo e formato.
- O depósito legal da quinta
edição está registrado em dezembro de 1872, ou seja, após a desencarnação de
Kardec.
- O endereço da editora
constante na capa da 5ª edição (“Librairie Spirite et des Sciences
Psychologiques, 7, rue de Lille”) não existia na época de Kardec,
reforçando que a publicação ocorreu depois de sua morte.
Avaliação: Qual Versão Seguir?
À luz dos
dados atuais, pode-se afirmar:
- As quatro primeiras edições
representam com fidelidade o texto publicado por Allan Kardec em vida.
- A quinta edição introduziu
mudanças relevantes, algumas com impacto doutrinário, como na abordagem
dos milagres do Evangelho, da desaparição do corpo de Cristo e da
aplicação do método do “duplo controle”.
- Ainda não existe prova
documental de que Kardec tenha aprovado ou redigido as modificações que
aparecem na edição de 1872.
Por isso,
para quem deseja estudar a Doutrina Espírita com segurança, é recomendável
priorizar as edições baseadas no texto de 1868 (1ª a 4ª edições),
preferencialmente em traduções críticas ou versões restauradas.
Relação com a Doutrina Espírita e a Revista
Espírita
A
Doutrina Espírita, conforme codificada por Allan Kardec, exige rigor
intelectual, honestidade e fidelidade ao ensino dos Espíritos. A Revista
Espírita (1858-1869) mostra como Kardec procedia, sempre submetendo
conteúdos ao crivo da lógica e à universalidade do ensino dos Espíritos.
Alterações
posteriores à sua desencarnação levantam, portanto, sérias implicações: o risco
de se comprometer a clareza doutrinária, gerar interpretações equivocadas e
afastar os leitores do pensamento genuíno do Codificador.
Conclusão
A
polêmica em torno da quinta edição de A Gênese não pode ser resolvida
por impressões pessoais ou sentimentos de indignação, mas sim pelo estudo
histórico, documental e crítico.
Os dados
indicam que:
- As quatro primeiras edições
são a fonte mais segura do pensamento de Allan Kardec.
- A quinta edição, embora
traga o rótulo de “revista e corrigida”, foi publicada após sua
desencarnação e não possui comprovação inequívoca de sua autoria.
Assim,
para preservar a integridade da Doutrina Espírita, é prudente que estudiosos e
instituições adotem como referência o texto de 1868, cotejado com traduções sérias
e pesquisas acadêmicas.
Referências
- Privato Goidanich, S. O
Legado de Allan Kardec. São Paulo: USE, 2018.
- Sausse, Henri. “Une
infamie”. Le Spiritisme, dezembro de 1884. Disponível em:
Biblioteca Espírita Digital.
- Grupo de Estudos Chico
Xavier. A Gênese: 150 anos – Valor da obra e suas primeiras edições
francesas. Disponível em: grupochicoxavier.com.br.
- Federação Espírita
Missionária do Sul (FEMS). A Gênese: os milagres e as predições segundo
o Espiritismo. Disponível em: fems.org.br.
- Sociedade Catarinense de
Estudos Espíritas (SCEE). O porquê do estudo de A Gênese.
Disponível em: scee.org.br.
- Fundação Espírita André Luiz
(FEAL). A Gênese: versão original sem adulterações. São Paulo,
2018. Disponível em: candeia.com.
- Biblioteca Nacional da
França (BNF) e Arquivos Nacionais (AN). Registros de depósito legal e
exemplares originais digitalizados.
- Portal do Espírito. Artigos
comemorativos e análises sobre A Gênese. Disponível em:
espirito.org.br.
- COMKardec. Edições de A
Gênese em francês digitalizadas. Disponível em: comkardec.net.br.
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