Introdução
O
Espiritismo, codificado por Allan Kardec na França entre 1857 e 1869,
apresenta-se como uma ciência de observação e uma filosofia espiritual. Como
ciência prática, consiste nas relações que se estabelecem com os Espíritos;
como filosofia, reúne as consequências morais que decorrem dessas relações.
Kardec o definiu como a ciência que trata da natureza, da origem e da
destinação dos Espíritos e de suas interações com o mundo corporal (O que é
o Espiritismo).
As obras
básicas da codificação — O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos
Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e
o Inferno (1865) e A Gênese (1868) — estabeleceram os fundamentos
doutrinários. A esse conjunto soma-se a Revista Espírita (1858-1869),
publicada mensalmente por Kardec, que funcionou como tribuna livre e documento
científico-histórico. Ali, registraram-se debates, relatos de experiências e
análises doutrinárias, tornando-se um complemento essencial aos livros da
Codificação.
No
Brasil, o Espiritismo encontrou terreno fértil. Desde meados do século XIX,
consolidou-se em instituições, na imprensa própria, na prática assistencial e
em diálogo com a religiosidade local. Entretanto, os dados recentes dos censos
apontam para um decréscimo no número de adeptos declarados, o que suscita
reflexões sobre os desafios atuais e o futuro da doutrina no país.
Este
artigo revisita a evolução histórica do Espiritismo no Brasil, confrontando
fontes acadêmicas, estatísticas e jornalísticas com a tradição doutrinária, a
fim de compreender sua trajetória, suas transformações e perspectivas.
1. Origem doutrinária e codificação
Allan
Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail, 1804-1869) estruturou o Espiritismo a
partir de ensinamentos recebidos dos Espíritos, aplicando um método dialógico:
perguntas sistemáticas e organização racional das respostas. Essa construção
filosófico-científica não tinha a pretensão de fundar uma nova religião, mas de
oferecer uma explicação da natureza espiritual, da reencarnação, da lei de
causa e efeito, da mediunidade e do progresso moral.
A Revista
Espírita, publicada entre 1858 e 1869, desempenhou papel decisivo na
divulgação internacional e no aprofundamento das discussões que consolidaram a
codificação.
2. Chegada e institucionalização no Brasil
- A chegada organizada do
Espiritismo ao Brasil ocorreu em 17 de setembro de 1865, em Salvador (BA),
quando Luís Olímpio Teles de Menezes presidiu a primeira sessão espírita
documentada, no “Grupo Familiar do Espiritismo”.
- Poucos anos depois, surgiram
traduções das obras de Kardec, periódicos como O Écho d’Além-Túmulo
(1869) e grupos como o “Grupo Confúcio” (Rio de Janeiro, 1873).
- A expansão inicial conviveu
com críticas da Igreja Católica, resistência da imprensa conservadora e
questionamentos sobre práticas mediúnicas. Ainda assim, o caráter
filosófico, científico e moral da doutrina favoreceu sua aceitação entre
setores letrados.
3. Crescimento no século XX
- O movimento expandiu-se por
meio de médiuns de grande expressão (Bezerra de Menezes, Chico Xavier,
Divaldo Franco), da literatura psicografada e da prática assistencial.
- A Federação Espírita
Brasileira (FEB) desempenhou papel central na divulgação e organização
doutrinária, estimulando centros, traduzindo e publicando obras e
promovendo assistência social.
- O Espiritismo atraiu
sobretudo as classes médias urbanas, que o viam como uma religiosidade
moderna, racional e conciliadora da fé com a ciência.
4. Dados demográficos: censos e estatísticas
- 1940: 463 mil espíritas
declarados.
- 2010: 2,2% da população (cerca
de 3,8 milhões).
- 2022: 1,8% da população acima de
10 anos (aprox. 3,3 milhões).
Os
números confirmam crescimento expressivo no século XX, seguido de um leve recuo
percentual na última década.
5. Por que o Espiritismo “vingou” no Brasil?
- Institucionalização precoce: centros, grupos e
publicações organizados desde o século XIX.
- Atração intelectual e moral: doutrina que dialogava com
ciência, filosofia e cristianismo.
- Prática assistencial: caridade e obras sociais,
fortalecendo seu alcance.
- Adaptação cultural: convivência com
catolicismo popular e religiões afro-brasileiras.
- Literatura mediúnica: psicografias tornaram os
conceitos acessíveis e amplamente difundidos.
6. Desafios recentes e decréscimos
- Queda de 2,2% (2010) para
1,8% (2022) da população.
- Avanço das religiões
afro-brasileiras e aumento do grupo “sem religião”.
- Perfil atual: maior
escolaridade e acesso digital, mas menor expressividade numérica.
- Causas apontadas:
secularização, concorrência religiosa, ausência de lideranças carismáticas
e declínio da visibilidade midiática.
7. Confronto com a doutrina codificada
- Kardec enfatizava estudo,
caridade e progresso moral.
- Muitos centros mantêm
fidelidade a esse tripé, mas há tensões entre rigor doutrinário e práticas
populares de sincretismo.
- A identidade espírita no
Brasil se equilibra entre a herança codificada e a adaptação cultural.
8. Influência da diminuição da Mocidade Espírita e
da Evangelização Infantil
A redução
da presença juvenil no movimento espírita é apontada como fator central no
decréscimo de adeptos.
Engajamento
Jovem
- Nos anos 1950-1960, a
Mocidade Espírita teve protagonismo; hoje, sua participação é
consideravelmente menor.
- Pesquisa nacional (2018) com
3.926 respondentes mostrou que apenas 11,1% tinham entre 11 e 30 anos,
enquanto 69,4% tinham mais de 40 anos.
Evangelização
Infantil
- Muitos centros enfrentam
dificuldades em manter turmas de evangelização, seja por falta de voluntários,
recursos ou interesse das famílias.
- Apesar de iniciada
oficialmente em 1914, a prática mostra sinais de enfraquecimento diante
das transformações sociais e culturais.
Impactos
- Menor evangelização infantil
implica menor probabilidade de que crianças se tornem adultos espíritas
engajados.
- A Mocidade é elo vital de
renovação de trabalhadores e dirigentes; sua diminuição fragiliza o futuro
institucional do movimento.
Perspectivas
- Necessidade de metodologias
mais atrativas, recursos digitais e linguagem acessível às novas gerações.
- Crescente tendência de
evangelização híbrida (presencial + online).
- Possibilidade de surgimento
de novas lideranças jovens, ligadas mais ao espaço digital e educacional
do que ao modelo tradicional de centro espírita.
Conclusão
O
Espiritismo no Brasil é fruto de um processo de recepção, adaptação e
institucionalização que atravessou séculos. Sua força histórica esteve no
diálogo entre ciência, filosofia e moral cristã, no caráter assistencial e na
literatura mediúnica.
Hoje, os
censos mostram uma leve retração percentual, mas não necessariamente uma crise.
Trata-se antes de uma transformação: menor adesão quantitativa, mas manutenção
de relevância cultural e intelectual. O desafio contemporâneo é conjugar
fidelidade à codificação com adaptação às novas linguagens, tecnologias e
gerações, garantindo continuidade e renovação do movimento.
Referências
- Allan Kardec. O Livro dos
Espíritos, 1857.
- Allan Kardec. O Livro dos
Médiuns, 1861.
- Allan Kardec. O Evangelho
Segundo o Espiritismo, 1864.
- Allan Kardec. O Céu e o
Inferno, 1865.
- Allan Kardec. A Gênese,
1868.
- Revue Spirite (Revista Espírita), 1858-1869.
- IBGE – Censos Demográficos
1940, 2010, 2022.
- Portal do Espírito. O
Espiritismo no Brasil: suas origens.
- CETJ. História do
Espiritismo no Brasil.
- Correio Braziliense. 160
anos do Espiritismo no Brasil: por que religião vingou tanto no país?
- CCEPA. Espiritismo recua
e religiões afro-brasileiras triplicam no Censo 2022.
- Seara Bendita. Espiritismo
recua para 1,8% enquanto Brasil diversifica religiosamente.
- Entrevista com Paulo
Henrique de Figueiredo – Portal SE Nova Era.
- Reflexões de Nena Galves – Correio
News.
- Horizonte (PUC Minas, 2024).
O crescimento do aspecto religioso do Espiritismo no Brasil no Século
XX e XXI.
- SciELO Brasil. Espiritualidade
como categoria sociológica de análise.
- Carvalho, Antonio Cesar
Perri de. Juventude – alertas sobre contextos sociais e espirituais.
Grupo de Estudos Espíritas Chico Xavier.
- Franzolim, Ivan. Pesquisa
para Espíritas 2018 – resultados consolidados. Juventude Espírita.
- União Espírita Mineira
(UEM). Levantamento de dados da Evangelização Infantil. Área de
Infância e Juventude.
- Federação Espírita
Brasileira (FEB). Histórico da Evangelização Infantil no Brasil.
Comunhão Espírita de Brasília.
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