terça-feira, 23 de setembro de 2025

A EVOLUÇÃO DO ESPIRITISMO NO BRASIL:
DA CODIFICAÇÃO DE ALLAN KARDEC
À REALIDADE CONTEMPORÂNEA
- A Era do Espírito -

Introdução

O Espiritismo, codificado por Allan Kardec na França entre 1857 e 1869, apresenta-se como uma ciência de observação e uma filosofia espiritual. Como ciência prática, consiste nas relações que se estabelecem com os Espíritos; como filosofia, reúne as consequências morais que decorrem dessas relações. Kardec o definiu como a ciência que trata da natureza, da origem e da destinação dos Espíritos e de suas interações com o mundo corporal (O que é o Espiritismo).

As obras básicas da codificação — O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868) — estabeleceram os fundamentos doutrinários. A esse conjunto soma-se a Revista Espírita (1858-1869), publicada mensalmente por Kardec, que funcionou como tribuna livre e documento científico-histórico. Ali, registraram-se debates, relatos de experiências e análises doutrinárias, tornando-se um complemento essencial aos livros da Codificação.

No Brasil, o Espiritismo encontrou terreno fértil. Desde meados do século XIX, consolidou-se em instituições, na imprensa própria, na prática assistencial e em diálogo com a religiosidade local. Entretanto, os dados recentes dos censos apontam para um decréscimo no número de adeptos declarados, o que suscita reflexões sobre os desafios atuais e o futuro da doutrina no país.

Este artigo revisita a evolução histórica do Espiritismo no Brasil, confrontando fontes acadêmicas, estatísticas e jornalísticas com a tradição doutrinária, a fim de compreender sua trajetória, suas transformações e perspectivas.

1. Origem doutrinária e codificação

Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail, 1804-1869) estruturou o Espiritismo a partir de ensinamentos recebidos dos Espíritos, aplicando um método dialógico: perguntas sistemáticas e organização racional das respostas. Essa construção filosófico-científica não tinha a pretensão de fundar uma nova religião, mas de oferecer uma explicação da natureza espiritual, da reencarnação, da lei de causa e efeito, da mediunidade e do progresso moral.

A Revista Espírita, publicada entre 1858 e 1869, desempenhou papel decisivo na divulgação internacional e no aprofundamento das discussões que consolidaram a codificação.

2. Chegada e institucionalização no Brasil

  • A chegada organizada do Espiritismo ao Brasil ocorreu em 17 de setembro de 1865, em Salvador (BA), quando Luís Olímpio Teles de Menezes presidiu a primeira sessão espírita documentada, no “Grupo Familiar do Espiritismo”.
  • Poucos anos depois, surgiram traduções das obras de Kardec, periódicos como O Écho d’Além-Túmulo (1869) e grupos como o “Grupo Confúcio” (Rio de Janeiro, 1873).
  • A expansão inicial conviveu com críticas da Igreja Católica, resistência da imprensa conservadora e questionamentos sobre práticas mediúnicas. Ainda assim, o caráter filosófico, científico e moral da doutrina favoreceu sua aceitação entre setores letrados.

3. Crescimento no século XX

  • O movimento expandiu-se por meio de médiuns de grande expressão (Bezerra de Menezes, Chico Xavier, Divaldo Franco), da literatura psicografada e da prática assistencial.
  • A Federação Espírita Brasileira (FEB) desempenhou papel central na divulgação e organização doutrinária, estimulando centros, traduzindo e publicando obras e promovendo assistência social.
  • O Espiritismo atraiu sobretudo as classes médias urbanas, que o viam como uma religiosidade moderna, racional e conciliadora da fé com a ciência.

4. Dados demográficos: censos e estatísticas

  • 1940: 463 mil espíritas declarados.
  • 2010: 2,2% da população (cerca de 3,8 milhões).
  • 2022: 1,8% da população acima de 10 anos (aprox. 3,3 milhões).

Os números confirmam crescimento expressivo no século XX, seguido de um leve recuo percentual na última década.

5. Por que o Espiritismo “vingou” no Brasil?

  • Institucionalização precoce: centros, grupos e publicações organizados desde o século XIX.
  • Atração intelectual e moral: doutrina que dialogava com ciência, filosofia e cristianismo.
  • Prática assistencial: caridade e obras sociais, fortalecendo seu alcance.
  • Adaptação cultural: convivência com catolicismo popular e religiões afro-brasileiras.
  • Literatura mediúnica: psicografias tornaram os conceitos acessíveis e amplamente difundidos.

6. Desafios recentes e decréscimos

  • Queda de 2,2% (2010) para 1,8% (2022) da população.
  • Avanço das religiões afro-brasileiras e aumento do grupo “sem religião”.
  • Perfil atual: maior escolaridade e acesso digital, mas menor expressividade numérica.
  • Causas apontadas: secularização, concorrência religiosa, ausência de lideranças carismáticas e declínio da visibilidade midiática.

7. Confronto com a doutrina codificada

  • Kardec enfatizava estudo, caridade e progresso moral.
  • Muitos centros mantêm fidelidade a esse tripé, mas há tensões entre rigor doutrinário e práticas populares de sincretismo.
  • A identidade espírita no Brasil se equilibra entre a herança codificada e a adaptação cultural.

8. Influência da diminuição da Mocidade Espírita e da Evangelização Infantil

A redução da presença juvenil no movimento espírita é apontada como fator central no decréscimo de adeptos.

Engajamento Jovem

  • Nos anos 1950-1960, a Mocidade Espírita teve protagonismo; hoje, sua participação é consideravelmente menor.
  • Pesquisa nacional (2018) com 3.926 respondentes mostrou que apenas 11,1% tinham entre 11 e 30 anos, enquanto 69,4% tinham mais de 40 anos.

Evangelização Infantil

  • Muitos centros enfrentam dificuldades em manter turmas de evangelização, seja por falta de voluntários, recursos ou interesse das famílias.
  • Apesar de iniciada oficialmente em 1914, a prática mostra sinais de enfraquecimento diante das transformações sociais e culturais.

Impactos

  • Menor evangelização infantil implica menor probabilidade de que crianças se tornem adultos espíritas engajados.
  • A Mocidade é elo vital de renovação de trabalhadores e dirigentes; sua diminuição fragiliza o futuro institucional do movimento.

Perspectivas

  • Necessidade de metodologias mais atrativas, recursos digitais e linguagem acessível às novas gerações.
  • Crescente tendência de evangelização híbrida (presencial + online).
  • Possibilidade de surgimento de novas lideranças jovens, ligadas mais ao espaço digital e educacional do que ao modelo tradicional de centro espírita.

Conclusão

O Espiritismo no Brasil é fruto de um processo de recepção, adaptação e institucionalização que atravessou séculos. Sua força histórica esteve no diálogo entre ciência, filosofia e moral cristã, no caráter assistencial e na literatura mediúnica.

Hoje, os censos mostram uma leve retração percentual, mas não necessariamente uma crise. Trata-se antes de uma transformação: menor adesão quantitativa, mas manutenção de relevância cultural e intelectual. O desafio contemporâneo é conjugar fidelidade à codificação com adaptação às novas linguagens, tecnologias e gerações, garantindo continuidade e renovação do movimento.

Referências

  • Allan Kardec. O Livro dos Espíritos, 1857.
  • Allan Kardec. O Livro dos Médiuns, 1861.
  • Allan Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo, 1864.
  • Allan Kardec. O Céu e o Inferno, 1865.
  • Allan Kardec. A Gênese, 1868.
  • Revue Spirite (Revista Espírita), 1858-1869.
  • IBGE – Censos Demográficos 1940, 2010, 2022.
  • Portal do Espírito. O Espiritismo no Brasil: suas origens.
  • CETJ. História do Espiritismo no Brasil.
  • Correio Braziliense. 160 anos do Espiritismo no Brasil: por que religião vingou tanto no país?
  • CCEPA. Espiritismo recua e religiões afro-brasileiras triplicam no Censo 2022.
  • Seara Bendita. Espiritismo recua para 1,8% enquanto Brasil diversifica religiosamente.
  • Entrevista com Paulo Henrique de Figueiredo – Portal SE Nova Era.
  • Reflexões de Nena Galves – Correio News.
  • Horizonte (PUC Minas, 2024). O crescimento do aspecto religioso do Espiritismo no Brasil no Século XX e XXI.
  • SciELO Brasil. Espiritualidade como categoria sociológica de análise.
  • Carvalho, Antonio Cesar Perri de. Juventude – alertas sobre contextos sociais e espirituais. Grupo de Estudos Espíritas Chico Xavier.
  • Franzolim, Ivan. Pesquisa para Espíritas 2018 – resultados consolidados. Juventude Espírita.
  • União Espírita Mineira (UEM). Levantamento de dados da Evangelização Infantil. Área de Infância e Juventude.
  • Federação Espírita Brasileira (FEB). Histórico da Evangelização Infantil no Brasil. Comunhão Espírita de Brasília.

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