Introdução
A
história da humanidade registra inúmeras epidemias que, ao longo dos séculos,
devastaram populações inteiras, modificaram estruturas sociais e provocaram
reflexões sobre a fragilidade da vida. No século XIX, Allan Kardec, através da Revista
Espírita, analisou fenômenos desse tipo à luz da Doutrina Espírita,
interpretando-os não apenas como acontecimentos sanitários, mas também como
provas morais e espirituais coletivas.
No número
de julho de 1867, Kardec publicou correspondências e comunicações mediúnicas
sobre uma epidemia que assolava a ilha Maurício. O relato mostra não apenas a
dor física e social causada pelo flagelo, mas também as consequências morais da
exploração humana em meio ao sofrimento, e a esperança sustentada pela fé
espírita diante da morte.
Ao
revisitarmos este episódio com os olhos do presente, podemos confrontar o olhar
espírita com dados atuais sobre epidemias e crises globais, refletindo sobre
como a mensagem espiritual permanece atual.
Epidemias e o Cenário Histórico
Na
segunda metade do século XIX, a medicina ainda dava passos lentos no combate a
epidemias. O quinino era, na época, um dos poucos recursos disponíveis contra
febres graves, como a malária. A carta publicada por Kardec denuncia um aspecto
recorrente em crises sanitárias: a especulação econômica diante da dor alheia.
Comerciantes aumentavam exorbitantemente o preço do quinino, impossibilitando
que os pobres tivessem acesso ao medicamento.
Esse
quadro nos lembra situações recentes. Durante a pandemia da COVID-19, a
escassez de insumos hospitalares, vacinas e medicamentos gerou debates
semelhantes sobre desigualdade no acesso à saúde. Relatórios da Organização
Mundial da Saúde (OMS, 2022) indicam que países ricos compraram, em alguns
momentos, mais de 70% das vacinas disponíveis, enquanto populações
inteiras de países pobres permaneceram desprotegidas. Assim como em 1867, a
exploração econômica e a desigualdade social se revelam mais mortíferas que o
próprio agente biológico da doença.
A Perspectiva Espírita: Provas e Regeneração
Segundo a
Doutrina Espírita, as epidemias não devem ser vistas apenas como castigos
coletivos, mas como provas e expiações necessárias para o progresso da
humanidade. Kardec afirma, em O Livro dos Espíritos (questão 737), que
os flagelos destruidores têm por fim “fazer avançar mais depressa o progresso
da humanidade”, ao provocar reflexões profundas e acelerar transformações
sociais e morais.
A
comunicação mediúnica publicada na Revista Espírita (1867) reforça essa
ideia ao falar da “grande emigração útil”, uma referência à partida de
Espíritos que, após a morte física, prosseguem em sua evolução em novos
contextos. Essa concepção não nega a dor, mas oferece um horizonte de
esperança: a vida continua, e os que desencarnam participam de um processo
coletivo de renovação.
Além
disso, destaca-se a serenidade do espírita diante da morte. O correspondente da
ilha Maurício, mesmo acometido pela doença, escreve com calma e confiança na
vida futura. Essa atitude traduz a força moral que o Espiritismo proporciona,
conforme já assinalava Kardec ao analisar a epidemia de cólera em 1865: a fé no
futuro é um poderoso preservativo moral.
O Desafio Ético: Entre a Caridade e a Ganância
Um ponto
central do relato de 1867 é a denúncia contra aqueles que exploravam a epidemia
para enriquecer. Essa conduta revela a persistência do egoísmo, que, segundo os
Espíritos, é a maior chaga da humanidade.
Na Revista
Espírita (março de 1866), Kardec já afirmava que os flagelos servem para
distinguir os homens de bem dos que apenas pensam em si. O episódio da ilha
Maurício mostra, de forma prática, essa separação entre o “joio e o trigo”:
enquanto uns rezavam e ajudavam os necessitados, outros aumentavam preços de
remédios, indiferentes às mortes ao redor.
Esse
dilema ético continua atual. Durante crises sanitárias recentes, verificou-se
tanto a solidariedade — com redes de voluntariado, médicos atuando em condições
extremas e pesquisas compartilhadas — quanto a ganância, com práticas de
superfaturamento e exploração econômica em meio ao sofrimento coletivo.
Conclusão
O
episódio da epidemia na ilha Maurício, registrado pela Revista Espírita
em 1867, ilustra três lições principais:
- A dor coletiva como
instrumento de regeneração: as epidemias, por mais cruéis que sejam,
provocam reflexões e mudanças sociais que podem levar a um mundo mais
justo.
- A força da fé espírita: diante da morte, a certeza
da imortalidade e da continuidade da vida confere serenidade e coragem.
- O desafio ético permanente: flagelos revelam o
contraste entre caridade e egoísmo, convidando cada um a se posicionar
moralmente.
Ao unir
os ensinamentos de Kardec às observações atuais sobre crises sanitárias,
percebemos que o Espiritismo oferece não apenas uma leitura espiritual da dor,
mas também um chamado à responsabilidade moral. Mais do que nunca, a caridade e
a fraternidade são os verdadeiros antídotos contra os flagelos da humanidade.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro
dos Espíritos. 87. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos. Diversos volumes (1858-1869).
- Organização Mundial da Saúde
(OMS). COVID-19 Vaccines Global Access Reports. Genebra, 2022.
- KARDEC, Allan. A Gênese.
25. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita, julho de 1867.
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