A
Parábola
Kafka retrata de forma marcante
esse tipo de esperança resignada e passiva em O Processo. Na narrativa, um homem chega diante
da porta que conduz à Lei e suplica ao porteiro que o deixe entrar. O guardião,
porém, responde que não pode autorizá-lo naquele momento. Embora a porta
permaneça aberta, o homem prefere aguardar a permissão, sentando-se à entrada e
ali permanecendo por dias, anos e, por fim, por toda a vida.
Repetidas vezes ele pede para
entrar, mas sempre recebe a mesma negativa. Nesse longo tempo, dedica-se a
observar o porteiro com tamanha atenção que chega a conhecer até as pulgas de
sua gola de pele. Já idoso e próximo da morte, o homem faz uma última pergunta:
“Como
é que, durante todos esses anos, ninguém além de mim procurou entrar?”
O porteiro, então, responde:
“Ninguém,
exceto você, poderia ter permissão para atravessar esta porta, pois ela era
destinada unicamente a você. Agora vou fechá-la.”
O homem estava velho demais
para compreender — e talvez não tivesse entendido nem mesmo na juventude.
Diante da aparente autoridade dos burocratas, aceitou a negativa e permaneceu
imóvel, sem perceber que poderia ter atravessado a porta por conta própria. Se tivesse
superado a esperança passiva e confiado em sua própria coragem, teria realizado
o ato libertador que o conduziria ao palácio brilhante.
Assim são muitos: permanecem à
espera de sinais externos, paralisados pela hesitação, quando o verdadeiro
caminho só pode ser aberto pela decisão interior de agir.
Introdução
A
esperança sempre acompanhou a humanidade em sua busca por sentido, justiça e
progresso. Muitas vezes, porém, é confundida com simples expectativa ou com a
passividade da espera. No entanto, sob a ótica espírita, codificada por Allan
Kardec, a esperança é uma força ativa da alma, intimamente ligada à fé e ao
trabalho constante no presente. Não se trata de aguardar milagres ou de confiar
cegamente em promessas distantes, mas de agir, de modo consciente e racional,
para transformar a si mesmo e colaborar na transformação coletiva.
Nos dias
atuais, marcados por crises sociais, ambientais e espirituais, compreender a
natureza da esperança é fundamental. O Espiritismo nos convida a refletir sobre
sua essência, distinguindo a esperança passiva — que paralisa — da esperança
ativa — que mobiliza a vida.
Esperança passiva e esperança ativa
A
esperança passiva é aquela que se confunde com a espera. É o estado do
indivíduo que transfere para o futuro, ou para terceiros, a realização de seus
ideais, sem assumir responsabilidade pessoal no processo. Kafka ilustra esse
tipo de esperança em O Processo, na história do homem que permanece à
porta da Lei até a morte, aguardando autorização que nunca chega.
Do ponto
de vista espírita, essa postura corresponde à ilusão de que basta “esperar”
para que os problemas se resolvam, seja pela intervenção divina, seja pelo
fluxo natural do tempo. Kardec, em O Livro dos Espíritos (questões 909 e
919), adverte que o progresso depende do esforço individual: o homem pode
vencer suas más inclinações e aperfeiçoar-se se tiver vontade firme. A
esperança, portanto, não é omissão, mas estímulo ao trabalho moral e
intelectual.
A
esperança ativa, ao contrário, é dinâmica. Não se trata de ansiar pelo
impossível nem de forçar a realidade com imprudência, mas de manter-se
preparado para colaborar com a vida no momento oportuno. É como o tigre
agachado que aguarda o instante certo para agir. Essa esperança exige
discernimento, paciência e coragem — virtudes que, segundo o Espiritismo, são
inseparáveis da fé racional.
O vínculo entre esperança e fé
Allan
Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo (cap. XIX, “A fé transporta
montanhas”), explica que a fé é “a
confiança na realização de algo, a certeza de alcançar um objetivo”. Mas
essa certeza não se baseia em ilusões ou fantasias: ela é fruto da compreensão
das leis divinas e da confiança no trabalho contínuo.
Nesse
sentido, a esperança é o estado de alma que sustenta a fé. Sem esperança, a fé se
esvazia em dogmatismo ou desânimo. Sem fé, a esperança degrada-se em mera
expectativa ingênua. Quando unidas, ambas se tornam motores da evolução:
inspiram o homem a suportar as dificuldades, a perseverar no bem e a acreditar
na perfectibilidade de si mesmo e da humanidade.
A Revista
Espírita (dezembro de 1862) registra uma comunicação espiritual que reforça
essa visão: “A esperança é irmã da fé e
ambas sustentam o homem nos dias de provação. Sem elas, a vida terrestre seria
insuportável.” Assim, fé e esperança são recursos interiores que fortalecem
o espírito diante das provas necessárias ao progresso.
Esperança e transformação social
No mundo
contemporâneo, a esperança espírita precisa ultrapassar o campo individual e
alcançar a esfera social. Diante das desigualdades, da violência e da
degradação ambiental, não basta esperar que governos ou gerações futuras
resolvam os problemas. A esperança verdadeira mobiliza o presente: é fé ativa
que se traduz em solidariedade, respeito à vida e promoção da justiça.
Kardec já
advertia, na Revista Espírita (abril de 1865), que “a regeneração da humanidade será o resultado do progresso moral”.
Isso significa que o futuro não está nas mãos de um destino cego, mas na ação
consciente dos homens que cultivam esperança lúcida e fé racional.
Conclusão
A
esperança não é sinônimo de espera, nem de aventura inconsequente. Ela é força
viva que nasce da fé esclarecida, sustentando o espírito na luta diária e
abrindo horizontes de renovação. É confiança ativa no bem, traduzida em atos
concretos de transformação.
O
Espiritismo nos ensina que cada um de nós é responsável por acender a chama da
esperança no próprio coração e no coração do mundo, não como simples
expectativa do futuro, mas como realização contínua do presente.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 1864.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos (1858-1869).
- FROMM, Erich. A Revolução da Esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
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