terça-feira, 30 de setembro de 2025

ESPIRITISMO E GNOSTICISMO: CONVERGÊNCIAS, RUPTURAS 
E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
- A Era do Espírito -

Introdução

Ao longo da história, inúmeras correntes filosófico-religiosas buscaram explicar a origem do ser humano, a dualidade entre corpo e alma e o sentido da vida. Entre elas, o gnosticismo se destacou por sua amplitude de ideias, mesclando influências da filosofia grega, do judaísmo, do cristianismo primitivo e de tradições orientais. Seu caráter sincrético atraiu pensadores e fiéis, mas também gerou tensões e heresias que marcaram os primeiros séculos da era cristã.

No século XIX, com a codificação do Espiritismo por Allan Kardec, abriu-se uma nova etapa do pensamento espiritualista. Diferente do gnosticismo, o Espiritismo se fundamenta em observação, método e universalidade do ensino dos Espíritos, afastando-se de interpretações esotéricas e especulativas. A análise espírita das velhas correntes gnósticas, ainda hoje presentes sob novas roupagens, nos ajuda a distinguir o ensino dos Espíritos superiores das distorções que buscam infiltrar-se no movimento.

O gnosticismo e sua herança histórica

O gnosticismo, em sua diversidade, foi marcado pelo dualismo metafísico entre bem e mal, espírito e matéria. No helenismo, predominava a visão de que o corpo seria prisão da alma; na vertente judaica, embora reconhecendo a realidade do mal, afirmava-se que Deus um dia o extinguiria.

Grupos como os docetistas chegaram a negar a encarnação real de Jesus, defendendo que seu corpo teria sido apenas aparente. Tais concepções, embora sofisticadas, entravam em choque com a mensagem simples e vivida do Cristo, que assumiu plenamente a condição humana. A Igreja primitiva combateu essas ideias, e os concílios posteriores consolidaram a defesa da humanidade e divindade de Jesus.

O maniqueísmo, originário da Pérsia, levou ao extremo a noção de luta entre luz e trevas, estabelecendo rígidas práticas ascéticas. Já na Idade Média, ressurge em movimentos como os albigenses ou cátaros, que, embora buscassem uma espiritualidade mais pura, acabaram perseguidos e exterminados pela força político-religiosa de seu tempo.

A resposta espírita à questão do corpo de Jesus

Com a codificação espírita, as antigas discussões gnósticas encontraram nova abordagem. Em A Gênese, Kardec trata da questão do desaparecimento do corpo de Jesus e afirma com clareza: o corpo do Cristo foi carnal, sujeito à morte e ao sepultamento, embora dotado de propriedades especiais que explicam sua manifestação após a ressurreição.

Essa posição exclui tanto a visão puramente materialista quanto as interpretações docetistas. Kardec lembra que ideias semelhantes às dos docetas e apolinaristas já haviam sido condenadas séculos antes, e adverte os espíritas contra o retorno dessas doutrinas sob novas formas.

É nesse ponto que se situa a polêmica com a obra de J.-B. Roustaing, Os Quatro Evangelhos, que revive concepções docetistas ao afirmar que o corpo de Jesus teria sido fluídico. Kardec, prudente, jamais aceitou tal versão, sustentando a coerência da encarnação real de Jesus. A própria Revista Espírita mostra que o codificador prezava pelo critério, rejeitando comunicações contraditórias e alertando para o risco das mistificações.

Gnosticismo, Espiritismo e o desafio do discernimento

Enquanto o gnosticismo buscava um conhecimento reservado a poucos iniciados, o Espiritismo se propõe universal e acessível, destinado a todos os que desejam compreender a vida espiritual com base em razão, fé e experiência. Kardec insistiu na clareza, na simplicidade e na universalidade do ensino dos Espíritos, o que contrasta com o hermetismo gnóstico.

Além disso, o Espiritismo rompe com o dualismo absoluto. A matéria não é princípio maligno, mas instrumento de progresso do Espírito. O corpo, embora sujeito ao desgaste, é oportunidade de aprendizado. O mal não é entidade eterna, mas resultado da ignorância, destinado a desaparecer à medida que os Espíritos evoluem.

Conclusão

A história do gnosticismo nos mostra a busca humana por explicações transcendentais. No entanto, muitas dessas construções teóricas se perderam em excessos, simbolismos e especulações. O Espiritismo, ao contrário, oferece uma síntese racional e prática: reconhece a realidade espiritual, a imortalidade da alma, a lei de causa e efeito e a reencarnação como caminho de progresso.

Para os espíritas de hoje, o estudo comparado é importante, mas deve vir acompanhado de discernimento. O convite de Kardec permanece atual: distinguir a revelação séria e universal das concepções particulares ou místicas. Assim, o Espiritismo preserva sua identidade, sem se confundir com sistemas que, embora interessantes, não oferecem a clareza e a lógica da Doutrina dos Espíritos.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. FEB.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. FEB.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869). Diversos números.
  • MOREIRA, Bernardino da Silva. O Espiritismo ante o gnosticismo e seus afluentes. Correio Fraterno do ABC, Ano XXXI, nº 321, outubro de 1997.
  • PIRES, J. Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo. Paideia.

 

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