Introdução
Ao longo
da história, inúmeras correntes filosófico-religiosas buscaram explicar a
origem do ser humano, a dualidade entre corpo e alma e o sentido da vida. Entre
elas, o gnosticismo se destacou por sua amplitude de ideias, mesclando
influências da filosofia grega, do judaísmo, do cristianismo primitivo e de
tradições orientais. Seu caráter sincrético atraiu pensadores e fiéis, mas
também gerou tensões e heresias que marcaram os primeiros séculos da era
cristã.
No século
XIX, com a codificação do Espiritismo por Allan Kardec, abriu-se uma nova etapa
do pensamento espiritualista. Diferente do gnosticismo, o Espiritismo se
fundamenta em observação, método e universalidade do ensino dos Espíritos,
afastando-se de interpretações esotéricas e especulativas. A análise espírita
das velhas correntes gnósticas, ainda hoje presentes sob novas roupagens, nos
ajuda a distinguir o ensino dos Espíritos superiores das distorções que buscam
infiltrar-se no movimento.
O gnosticismo e sua herança histórica
O
gnosticismo, em sua diversidade, foi marcado pelo dualismo metafísico entre bem
e mal, espírito e matéria. No helenismo, predominava a visão de que o corpo
seria prisão da alma; na vertente judaica, embora reconhecendo a realidade do
mal, afirmava-se que Deus um dia o extinguiria.
Grupos
como os docetistas chegaram a negar a encarnação real de Jesus, defendendo que
seu corpo teria sido apenas aparente. Tais concepções, embora sofisticadas,
entravam em choque com a mensagem simples e vivida do Cristo, que assumiu
plenamente a condição humana. A Igreja primitiva combateu essas ideias, e os
concílios posteriores consolidaram a defesa da humanidade e divindade de Jesus.
O
maniqueísmo, originário da Pérsia, levou ao extremo a noção de luta entre luz e
trevas, estabelecendo rígidas práticas ascéticas. Já na Idade Média, ressurge
em movimentos como os albigenses ou cátaros, que, embora buscassem uma
espiritualidade mais pura, acabaram perseguidos e exterminados pela força
político-religiosa de seu tempo.
A resposta espírita à questão do corpo de Jesus
Com a
codificação espírita, as antigas discussões gnósticas encontraram nova
abordagem. Em A Gênese, Kardec trata da questão do desaparecimento do
corpo de Jesus e afirma com clareza: o corpo do Cristo foi carnal, sujeito à
morte e ao sepultamento, embora dotado de propriedades especiais que explicam
sua manifestação após a ressurreição.
Essa
posição exclui tanto a visão puramente materialista quanto as interpretações
docetistas. Kardec lembra que ideias semelhantes às dos docetas e apolinaristas
já haviam sido condenadas séculos antes, e adverte os espíritas contra o
retorno dessas doutrinas sob novas formas.
É nesse
ponto que se situa a polêmica com a obra de J.-B. Roustaing, Os Quatro
Evangelhos, que revive concepções docetistas ao afirmar que o corpo de
Jesus teria sido fluídico. Kardec, prudente, jamais aceitou tal versão,
sustentando a coerência da encarnação real de Jesus. A própria Revista
Espírita mostra que o codificador prezava pelo critério, rejeitando
comunicações contraditórias e alertando para o risco das mistificações.
Gnosticismo, Espiritismo e o desafio do
discernimento
Enquanto
o gnosticismo buscava um conhecimento reservado a poucos iniciados, o
Espiritismo se propõe universal e acessível, destinado a todos os que desejam
compreender a vida espiritual com base em razão, fé e experiência. Kardec
insistiu na clareza, na simplicidade e na universalidade do ensino dos
Espíritos, o que contrasta com o hermetismo gnóstico.
Além
disso, o Espiritismo rompe com o dualismo absoluto. A matéria não é princípio
maligno, mas instrumento de progresso do Espírito. O corpo, embora sujeito ao desgaste,
é oportunidade de aprendizado. O mal não é entidade eterna, mas resultado da
ignorância, destinado a desaparecer à medida que os Espíritos evoluem.
Conclusão
A
história do gnosticismo nos mostra a busca humana por explicações
transcendentais. No entanto, muitas dessas construções teóricas se perderam em
excessos, simbolismos e especulações. O Espiritismo, ao contrário, oferece uma
síntese racional e prática: reconhece a realidade espiritual, a imortalidade da
alma, a lei de causa e efeito e a reencarnação como caminho de progresso.
Para os
espíritas de hoje, o estudo comparado é importante, mas deve vir acompanhado de
discernimento. O convite de Kardec permanece atual: distinguir a revelação
séria e universal das concepções particulares ou místicas. Assim, o Espiritismo
preserva sua identidade, sem se confundir com sistemas que, embora
interessantes, não oferecem a clareza e a lógica da Doutrina dos Espíritos.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro
dos Espíritos. FEB.
- KARDEC, Allan. A Gênese.
FEB.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita (1858-1869). Diversos números.
- MOREIRA, Bernardino da
Silva. O Espiritismo ante o gnosticismo e seus afluentes. Correio
Fraterno do ABC, Ano XXXI, nº 321, outubro de 1997.
- PIRES, J. Herculano. Curso
Dinâmico de Espiritismo. Paideia.
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