Introdução
Desde
a publicação de A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin, a
teoria da evolução tornou-se um dos marcos mais influentes da ciência moderna.
No meio espírita, surge frequentemente a afirmação de que Allan Kardec teria
antecipado Darwin ao apresentar em O Livro dos Espíritos (1857) uma visão
evolucionista da criação.
Entretanto,
uma análise criteriosa das edições da obra, dos desdobramentos em A Gênese
(1868) e dos artigos da Revista Espírita (1858–1869), revela que a
questão não é tão simples. Kardec, fiel ao princípio de que o Espiritismo
deveria caminhar lado a lado com a ciência, ajustou e aprofundou suas
formulações doutrinárias à medida que novos conhecimentos científicos se
consolidavam.
Assim,
o problema central que este artigo examina é: Kardec antecipou Darwin ou, ao
contrário, incorporou a teoria evolucionista ao arcabouço espírita após 1859?
1. A primeira edição de O Livro dos Espíritos
(1857)
A
edição inicial de O Livro dos Espíritos, com 501 perguntas, não
apresentou uma concepção evolucionista compatível com a teoria darwiniana. Pelo
contrário, na questão 127, os Espíritos afirmam que a alma humana jamais passou
pelos diversos reinos da natureza para alcançar o estágio hominal:
“Não! Não! Homens nós
somos desde natos. Cada coisa progride na sua espécie e em sua essência; o homem
jamais foi outra coisa que não um homem.” (Kardec, 2004, p. 65).
O
comentário de Kardec reforça essa perspectiva, descartando a possibilidade de o
Espírito humano ter evoluído gradualmente através dos reinos inferiores.
2. A segunda edição de O Livro dos Espíritos
(1860)
Com a
ampliação da obra para 1.019 perguntas, publicada em 18 de março de 1860, após
a divulgação da obra de Darwin, o tratamento da questão sofreu uma inflexão. As
perguntas 607 a 611 introduzem uma noção de evolução espiritual que inclui o
“princípio inteligente” elaborando-se gradualmente nos seres inferiores antes
de alcançar a condição humana:
“Nesses seres, cuja
totalidade estais longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora,
se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida […] Entra então no
período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade
de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos.” (Kardec, 2007a, p.
336-337).
Esse
deslocamento evidencia que a segunda edição dialogava com um novo cenário
científico e cultural, no qual a teoria darwiniana já circulava e provocava
debates intensos.
3. A Gênese (1868) e a síntese espírita da
evolução
Em A Gênese, capítulo X, item 29, Kardec
afirma que o homem é “o último elo da cadeia da animalidade na Terra”, aproximando-se ainda
mais da perspectiva científica da evolução biológica. Contudo, ele distingue
claramente a evolução material da evolução espiritual, afirmando que a Doutrina
Espírita não reduz o homem apenas à sua dimensão orgânica.
Aqui
se percebe que o Espiritismo não se limita a repetir Darwin, mas propõe uma
síntese em que a evolução biológica serve de base para a ascensão espiritual,
cujo destino final é a perfeição relativa diante de Deus.
4. A Revista Espírita e a abertura ao
progresso científico
Nos
artigos da Revista Espírita, especialmente durante a década de 1860,
Kardec reiterava o princípio de que o Espiritismo deveria acompanhar a ciência.
Em janeiro de 1863, por exemplo, sublinhou que a Doutrina não teme o avanço
científico, pois está pronta a rever pontos específicos caso novas descobertas
o exijam.
Essa
postura é resumida em sua célebre declaração:
“[...] Caminhando de par
com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas
descobertas lhe demonstrarem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se
modificará nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.” (A Gênese, cap.
I, item 55).
Portanto,
Kardec não via contradição entre ciência e Espiritismo, mas complementaridade.
Conclusão
A
análise histórica e doutrinária demonstra que Allan Kardec não antecipou a
teoria da evolução de Darwin em 1857. Pelo contrário, a primeira edição de O
Livro dos Espíritos rejeitava a ideia de que o Espírito humano tivesse
percorrido os reinos inferiores.
Somente
após a publicação de A Origem das Espécies (1859) é que, na segunda
edição de O Livro dos Espíritos (1860) e posteriormente em A Gênese
(1868), Kardec incorporou noções mais afinadas com a ideia de evolução,
ampliando o ensino dos Espíritos para incluir o desenvolvimento do princípio
inteligente ao longo da escala dos seres.
Dessa
forma, podemos afirmar que o Espiritismo não antecipou Darwin, mas dialogou
com a teoria evolucionista, reinterpretando-a à luz da lei de progresso
espiritual. Essa síntese permanece atual, pois demonstra a abertura do
Espiritismo ao conhecimento científico e sua vocação para integrar ciência,
filosofia e moral sob a égide da moral cristã.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. 1ª edição, 1857.
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. 2ª edição ampliada, 1860.
- KARDEC, Allan. A
Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 2007.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita. 1858–1869.
- PAIM, Zuleica M. S.
Evolução: do átomo ao arcanjo. Porto Alegre: Francisco Spinelli,
2013.
- SILVA SOBRINHO
NETO, Paulo da, Kardec não Antecipou
Darwin, artigo.
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