quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O ESPIRITISMO E A QUESTÃO DO RACISMO
ANÁLISE DOUTRINÁRIA E HISTÓRICA
- A Era do Espírito -

Introdução

A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec no século XIX, trouxe à humanidade princípios universais baseados na lei de amor, justiça e caridade. No entanto, como movimento nascido em meio a debates científicos e sociais de sua época, o Espiritismo frequentemente é alvo de controvérsias relacionadas a possíveis interpretações racistas em algumas passagens das obras do Codificador ou na recepção de suas ideias.

A questão do racismo no Espiritismo deve ser analisada com equilíbrio: por um lado, a Doutrina codificada afirma a igualdade essencial entre todos os espíritos, independentemente da cor da pele, origem ou condição social; por outro, não se pode ignorar que Kardec viveu num contexto europeu em que teorias como a frenologia, o evolucionismo social e concepções hierárquicas de “raças” exerciam forte influência intelectual.

Este artigo pretende analisar a questão do racismo sob a ótica do Espiritismo, considerando as obras fundamentais de Kardec, artigos da Revista Espírita (1858–1869) e estudos contemporâneos que buscam distinguir o núcleo doutrinário espírita das interpretações contextuais próprias do século XIX.

1. A igualdade essencial dos Espíritos

Em O Livro dos Espíritos (1857), os Espíritos Superiores estabelecem que todos os seres humanos possuem a mesma origem espiritual e estão submetidos às mesmas leis divinas. A questão 803 é categórica:

“Todos os homens são iguais perante Deus. A todos Ele deu a mesma lei e todos são chamados a segui-la.”

Esta declaração desmonta qualquer tentativa de legitimar desigualdades raciais, pois evidencia que as diferenças observadas entre os povos são circunstanciais, resultantes de estágios evolutivos temporários, e não de uma inferioridade intrínseca.

No mesmo sentido, O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864) reafirma o mandamento do amor universal, condenando preconceitos e exclusivismos que atentem contra a fraternidade. A mensagem do Espírito de Verdade recorda:

“Espíritas! Amai-vos, eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo.”

Assim, o princípio da igualdade espiritual constitui uma das bases inegociáveis da Doutrina Espírita.

2. Kardec, a teoria da beleza e o contexto científico do século XIX

Em Obras Póstumas, na primeira parte, Kardec aborda a “teoria da beleza”, discutindo critérios de estética e desenvolvimento intelectual entre diferentes povos. Algumas expressões, quando retiradas de seu contexto, podem sugerir hierarquias raciais. Contudo, é necessário compreender que Kardec se apoiava em terminologias científicas de seu tempo, como a frenologia, que hoje se encontram superadas.

Estudos como os de Paulo da Silva Sobrinho Neto (Racismo em Kardec?, 2014/2023) mostram que parte das acusações de racismo contra o Codificador decorre de leituras descontextualizadas, utilizadas por movimentos antiespíritas para atacar a Doutrina. Segundo o autor, a essência da mensagem de Kardec está na universalidade do progresso espiritual, não em classificações biológicas ou raciais.

3. A Revista Espírita e a visão universalista

Nos artigos da Revista Espírita (1858–1869), especialmente no número de janeiro de 1863, Kardec destaca o caráter universal do Espiritismo. Em diversas passagens, ele ressalta que a Doutrina não pertence a um povo ou raça em particular, mas à humanidade.

Um exemplo marcante é a defesa de que o Espiritismo não poderia ser monopólio de um país ou religião específica, pois suas leis têm alcance universal. A diversidade cultural e espiritual é vista como expressão da pluralidade de experiências necessárias ao progresso coletivo.

Assim, ao contrário de legitimar exclusões raciais, a Revista Espírita frequentemente sublinha o papel do Espiritismo como ponto de união entre diferentes povos.

4. O núcleo doutrinário contra o preconceito

Embora certas expressões de Kardec possam refletir o vocabulário científico do século XIX, o núcleo da Doutrina Espírita se opõe radicalmente ao racismo, ao afirmar:

  • A unidade essencial da origem espiritual;
  • A reencarnação como mecanismo universal de progresso;
  • A lei de igualdade perante Deus;
  • A fraternidade como exigência moral do Evangelho.

Dessa forma, o racismo, enquanto ideologia de inferiorização de povos, é incompatível com os princípios fundamentais do Espiritismo.

5. Ações Judiciais Contemporâneas

A reflexão em torno da questão racial nas obras de Allan Kardec e em textos espíritas correlatos chegou também ao cenário jurídico contemporâneo.

Em 6 de novembro de 2007, o Ministério Público Federal firmou um Termo de Compromisso com a Federação Espírita Brasileira (FEB), a Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP) e seis editoras responsáveis pela publicação de obras espíritas. O acordo determinou a inclusão de uma Nota Explicativa nas edições de Obras Póstumas e em outros livros de caráter doutrinário. Essa nota tem como finalidade esclarecer o contexto histórico do século XIX, ressaltando ao leitor que a Doutrina Espírita, em sua essência, prega o respeito absoluto à dignidade humana e à diversidade, não podendo ser confundida com posturas discriminatórias que marcaram o período em que os textos foram redigidos.

A medida representou um esforço de harmonizar a preservação histórica das fontes com a necessária atualização ética diante das sensibilidades sociais contemporâneas. A nota não altera o conteúdo original das obras, mas oferece um recurso pedagógico para que o leitor compreenda as limitações culturais da época e perceba a diferença entre a mensagem central do Espiritismo e os condicionamentos do pensamento do século XIX.

Mais tarde, em 25 de abril de 2011, a questão foi novamente debatida no âmbito judicial. O juiz federal Marcelo Freiberger Zandavali indeferiu um pedido de liminar que buscava o recolhimento de exemplares de Obras Póstumas, em ação popular ajuizada sob a alegação de racismo. Em sua decisão, o magistrado destacou que o conteúdo da obra reflete concepções típicas do período em que foi escrita, sem, contudo, promover a discriminação racial.

O juiz ressaltou ainda que a inclusão da Nota Explicativa evidencia a postura das instituições espíritas e editoras em assumir compromisso público com o respeito integral à diversidade humana. Dessa forma, a preservação do texto original foi conciliada com a salvaguarda dos valores de igualdade e dignidade que norteiam o Espiritismo e a própria Constituição Federal brasileira.

Esse episódio revela a importância de se compreender a Doutrina Espírita em sua dimensão atemporal, mas sem ignorar os desafios interpretativos decorrentes de sua transmissão histórica. Ao mesmo tempo, reforça a necessidade de leituras críticas e contextualizadas, que reconheçam a essência universalista da mensagem espírita, desvinculando-a de preconceitos herdados do passado.

Conclusão

O estudo da questão do racismo à luz do Espiritismo requer discernimento para separar os elementos contextuais do século XIX do núcleo doutrinário eterno. Kardec, como homem de seu tempo, utilizou conceitos científicos hoje ultrapassados, mas a essência de sua obra — codificada sob a inspiração dos Espíritos Superiores — proclama a igualdade, a fraternidade e a unidade da humanidade.

O Espiritismo, portanto, não legitima o racismo; ao contrário, fornece fundamentos espirituais para superá-lo, indicando que a verdadeira beleza e superioridade estão no progresso moral e intelectual, e não na cor da pele ou em características externas.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1ª ed. 1857.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 1864.
  • KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Primeira parte: A teoria da Beleza.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita. Diversos artigos (1858–1869), especialmente edição de janeiro de 1863.
  • SILVA SOBRINHO NETO, Paulo da. Racismo em Kardec?: A propaganda antiespírita e a verdade doutrinária. EVOC / Ethos Editora, 2014/2023.
  • Página de Allan Kardec na Wikipédia (seção: Controvérsias – frenologia e declarações racistas).

Referências Específicas

  1. Ministério Público Federal (MPF). Termo de Compromisso firmado em 6 de novembro de 2007 entre o MPF, a Federação Espírita Brasileira (FEB), a Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP) e editoras espíritas, estabelecendo a inclusão de Nota Explicativa em Obras Póstumas e demais publicações doutrinárias.
  2. BRASIL. Justiça Federal – Seção Judiciária de São Paulo. Ação Popular nº 0004763-10.2010.403.6100. Decisão do juiz federal Marcelo Freiberger Zandavali, proferida em 25 de abril de 2011, que indeferiu pedido liminar para recolhimento de exemplares de Obras Póstumas, reconhecendo o caráter histórico do texto e a legitimidade da Nota Explicativa.

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