A
Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec no século XIX, trouxe à
humanidade princípios universais baseados na lei de amor, justiça e caridade.
No entanto, como movimento nascido em meio a debates científicos e sociais de
sua época, o Espiritismo frequentemente é alvo de controvérsias relacionadas a
possíveis interpretações racistas em algumas passagens das obras do Codificador
ou na recepção de suas ideias.
A
questão do racismo no Espiritismo deve ser analisada com equilíbrio: por um
lado, a Doutrina codificada afirma a igualdade essencial entre todos os
espíritos, independentemente da cor da pele, origem ou condição social; por
outro, não se pode ignorar que Kardec viveu num contexto europeu em que teorias
como a frenologia, o evolucionismo social e concepções hierárquicas de “raças”
exerciam forte influência intelectual.
Este
artigo pretende analisar a questão do racismo sob a ótica do Espiritismo,
considerando as obras fundamentais de Kardec, artigos da Revista Espírita
(1858–1869) e estudos contemporâneos que buscam distinguir o núcleo doutrinário
espírita das interpretações contextuais próprias do século XIX.
1. A igualdade essencial dos Espíritos
Em O
Livro dos Espíritos (1857), os Espíritos Superiores estabelecem que todos
os seres humanos possuem a mesma origem espiritual e estão submetidos às mesmas
leis divinas. A questão 803 é categórica:
“Todos os homens são
iguais perante Deus. A todos Ele deu a mesma lei e todos são chamados a
segui-la.”
Esta
declaração desmonta qualquer tentativa de legitimar desigualdades raciais, pois
evidencia que as diferenças observadas entre os povos são circunstanciais,
resultantes de estágios evolutivos temporários, e não de uma inferioridade
intrínseca.
No
mesmo sentido, O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864) reafirma o
mandamento do amor universal, condenando preconceitos e exclusivismos que
atentem contra a fraternidade. A mensagem do Espírito de Verdade recorda:
“Espíritas! Amai-vos,
eis o primeiro ensinamento. Instruí-vos, eis o segundo.”
Assim,
o princípio da igualdade espiritual constitui uma das bases inegociáveis da
Doutrina Espírita.
2. Kardec, a teoria da beleza e o contexto
científico do século XIX
Em Obras
Póstumas, na primeira parte, Kardec aborda a “teoria da beleza”, discutindo
critérios de estética e desenvolvimento intelectual entre diferentes povos.
Algumas expressões, quando retiradas de seu contexto, podem sugerir hierarquias
raciais. Contudo, é necessário compreender que Kardec se apoiava em
terminologias científicas de seu tempo, como a frenologia, que hoje se
encontram superadas.
Estudos
como os de Paulo da Silva Sobrinho Neto (Racismo em Kardec?, 2014/2023)
mostram que parte das acusações de racismo contra o Codificador decorre de
leituras descontextualizadas, utilizadas por movimentos antiespíritas para
atacar a Doutrina. Segundo o autor, a essência da mensagem de Kardec está na
universalidade do progresso espiritual, não em classificações biológicas ou
raciais.
3. A Revista Espírita e a visão universalista
Nos
artigos da Revista Espírita (1858–1869), especialmente no número de
janeiro de 1863, Kardec destaca o caráter universal do Espiritismo. Em diversas
passagens, ele ressalta que a Doutrina não pertence a um povo ou raça em
particular, mas à humanidade.
Um
exemplo marcante é a defesa de que o Espiritismo não poderia ser monopólio de
um país ou religião específica, pois suas leis têm alcance universal. A
diversidade cultural e espiritual é vista como expressão da pluralidade de
experiências necessárias ao progresso coletivo.
Assim,
ao contrário de legitimar exclusões raciais, a Revista Espírita
frequentemente sublinha o papel do Espiritismo como ponto de união entre
diferentes povos.
4. O núcleo doutrinário contra o preconceito
Embora
certas expressões de Kardec possam refletir o vocabulário científico do século
XIX, o núcleo da Doutrina Espírita se opõe radicalmente ao racismo, ao afirmar:
- A unidade essencial
da origem espiritual;
- A reencarnação como
mecanismo universal de progresso;
- A lei de igualdade
perante Deus;
- A fraternidade como
exigência moral do Evangelho.
Dessa
forma, o racismo, enquanto ideologia de inferiorização de povos, é incompatível
com os princípios fundamentais do Espiritismo.
5. Ações Judiciais Contemporâneas
A
reflexão em torno da questão racial nas obras de Allan Kardec e em textos
espíritas correlatos chegou também ao cenário jurídico contemporâneo.
Em 6
de novembro de 2007, o Ministério Público Federal firmou um Termo de
Compromisso com a Federação Espírita Brasileira (FEB), a Federação Espírita
do Estado de São Paulo (FEESP) e seis editoras responsáveis pela publicação de
obras espíritas. O acordo determinou a inclusão de uma Nota Explicativa
nas edições de Obras Póstumas e em outros livros de caráter doutrinário.
Essa nota tem como finalidade esclarecer o contexto histórico do século XIX,
ressaltando ao leitor que a Doutrina Espírita, em sua essência, prega o
respeito absoluto à dignidade humana e à diversidade, não podendo ser
confundida com posturas discriminatórias que marcaram o período em que os
textos foram redigidos.
A
medida representou um esforço de harmonizar a preservação histórica das fontes
com a necessária atualização ética diante das sensibilidades sociais
contemporâneas. A nota não altera o conteúdo original das obras, mas oferece um
recurso pedagógico para que o leitor compreenda as limitações culturais da
época e perceba a diferença entre a mensagem central do Espiritismo e os
condicionamentos do pensamento do século XIX.
Mais
tarde, em 25 de abril de 2011, a questão foi novamente debatida no
âmbito judicial. O juiz federal Marcelo Freiberger Zandavali indeferiu
um pedido de liminar que buscava o recolhimento de exemplares de Obras
Póstumas, em ação popular ajuizada sob a alegação de racismo. Em sua
decisão, o magistrado destacou que o conteúdo da obra reflete concepções
típicas do período em que foi escrita, sem, contudo, promover a
discriminação racial.
O juiz
ressaltou ainda que a inclusão da Nota Explicativa evidencia a postura das
instituições espíritas e editoras em assumir compromisso público com o
respeito integral à diversidade humana. Dessa forma, a preservação do texto
original foi conciliada com a salvaguarda dos valores de igualdade e dignidade
que norteiam o Espiritismo e a própria Constituição Federal brasileira.
Esse
episódio revela a importância de se compreender a Doutrina Espírita em sua
dimensão atemporal, mas sem ignorar os desafios interpretativos
decorrentes de sua transmissão histórica. Ao mesmo tempo, reforça a necessidade
de leituras críticas e contextualizadas, que reconheçam a essência
universalista da mensagem espírita, desvinculando-a de preconceitos herdados do
passado.
Conclusão
O
estudo da questão do racismo à luz do Espiritismo requer discernimento para
separar os elementos contextuais do século XIX do núcleo doutrinário eterno.
Kardec, como homem de seu tempo, utilizou conceitos científicos hoje
ultrapassados, mas a essência de sua obra — codificada sob a inspiração dos
Espíritos Superiores — proclama a igualdade, a fraternidade e a unidade da
humanidade.
O
Espiritismo, portanto, não legitima o racismo; ao contrário, fornece
fundamentos espirituais para superá-lo, indicando que a verdadeira beleza e
superioridade estão no progresso moral e intelectual, e não na cor da pele ou
em características externas.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. 1ª ed. 1857.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho Segundo o Espiritismo. 1864.
- KARDEC, Allan. Obras
Póstumas. Primeira parte: A teoria da Beleza.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita. Diversos artigos (1858–1869), especialmente edição de
janeiro de 1863.
- SILVA SOBRINHO
NETO, Paulo da. Racismo em Kardec?: A propaganda antiespírita e a
verdade doutrinária. EVOC / Ethos Editora, 2014/2023.
- Página de Allan
Kardec na Wikipédia (seção: Controvérsias – frenologia e declarações
racistas).
Referências Específicas
- Ministério Público
Federal (MPF). Termo de Compromisso firmado em 6 de novembro
de 2007 entre o MPF, a Federação Espírita Brasileira (FEB), a Federação
Espírita do Estado de São Paulo (FEESP) e editoras espíritas,
estabelecendo a inclusão de Nota Explicativa em Obras Póstumas e
demais publicações doutrinárias.
- BRASIL. Justiça
Federal – Seção Judiciária de São Paulo. Ação Popular nº
0004763-10.2010.403.6100. Decisão do juiz federal Marcelo Freiberger
Zandavali, proferida em 25 de abril de 2011, que indeferiu pedido liminar
para recolhimento de exemplares de Obras Póstumas, reconhecendo o
caráter histórico do texto e a legitimidade da Nota Explicativa.
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