Introdução
“A
sabedoria do homem sagaz é descobrir o seu próprio caminho”
(Pr 14,8). Essa advertência bíblica nos convida a usar a razão como guia
seguro, para que não aceitemos sem exame o que contraria as leis divinas,
expressas na ordem natural do universo.
O Espiritismo, codificado por Allan Kardec, ensina
que Deus não derroga suas próprias leis, mas age por meio delas. Logo, a
interpretação literal de certos textos bíblicos, que apresentam fenômenos
contrários à lógica e à ciência, carece de uma análise à luz da razão e do
ensino espírita.
Dois episódios chamam atenção: o Sol que parou
(Josué 10,12-14) e a sombra que voltou atrás (Isaías 38,1-8; 2 Reis 20,1-11).
Teriam sido milagres? Ou reflexos de uma compreensão primitiva dos fenômenos
cósmicos?
O Sol que
Parou
O relato de Josué afirma que o Sol se deteve no céu
para prolongar a luz do dia. Ora, o conhecimento atual — já acessível em parte
à época de Kardec — demonstra que o ciclo do dia e da noite resulta da rotação
da Terra sobre seu eixo, não do movimento do Sol.
Assim, parar o Sol não prolongaria a claridade.
Além disso, se a Terra tivesse parado sua rotação de forma brusca, os efeitos
seriam catastróficos: tsunamis devastadores, corpos arremessados ao espaço pela
inércia, perturbações generalizadas. Como a Revista Espírita (setembro
de 1866) afirma:
“O
milagre, no sentido de derrogação das leis divinas, não existe; Deus não se
contradiz.”
O episódio, portanto, deve ser entendido como uma interpretação
simbólica ou lendária, fruto da ignorância científica do redator, e não
como um evento real.
A Sombra
que Recuou
Já o caso de Ezequias relata que o Sol voltou dez
graus no relógio solar como sinal divino. O recuo da sombra implicaria que a
Terra girasse no sentido contrário — com as mesmas consequências desastrosas
descritas anteriormente.
O Espiritismo ensina que Deus é soberanamente
justo e bom, e não faria prodígios materiais para favorecer um indivíduo em
detrimento de outros igualmente piedosos que sofrem sem alívio aparente.
A Revista Espírita (dezembro de 1861) lembra
que a providência divina não se manifesta por capricho ou favoritismo, mas por
meio de leis universais e da justiça espiritual que rege a todos.
Assim, o episódio deve ser lido como um recurso
literário ou simbólico: a retroação da sombra representaria a concessão de
mais tempo de vida, não um fenômeno astronômico literal.
O Valor
do Livre-Exame
O Espiritismo não nega a Bíblia, mas propõe sua
leitura à luz da razão e da lei do progresso. Jesus advertiu: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará” (Jo 8,32).
Questionar não é falta de fé, mas expressão de
confiança em Deus, que nos deu a inteligência como instrumento de evolução.
Kardec afirma em O Livro dos Espíritos (q. 13):
“Deus
é soberanamente justo e bom; a razão no-lo diz.”
Se algo apresentado como revelação contradiz a
razão e as leis da natureza, devemos rejeitar a interpretação literal e buscar
o sentido moral e espiritual da lição.
Conclusão
Os chamados “milagres cósmicos” não resistem ao
crivo da lógica nem ao exame das leis divinas imutáveis. No entanto, guardam
uma mensagem moral: a confiança em Deus, a fé na vida além da morte e a
necessidade de buscarmos a verdade com o raciocínio livre de dogmas.
Mais do que acreditar em fenômenos impossíveis, a
verdadeira fé, segundo o Espiritismo, é aquela que se apoia na razão, que
respeita as leis divinas e que conduz o homem ao progresso moral e espiritual.
“Examinai
tudo, retende o que é bom” (1 Ts 5,21). Este é o caminho da sabedoria, da
liberdade de consciência e da fé raciocinada que nos liberta.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1859.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869), diversos
números.
- SOBRINHO, Paulo da Silva Neto, Milagres
de Ordem Cósmica, artigo.
- A Bíblia de Jerusalém. Sociedade Bíblica Católica Internacional,
Paulus.
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