Introdução
A
reencarnação é uma das ideias mais antigas da humanidade, presente em tradições
religiosas e filosóficas do Oriente e do Ocidente. No cristianismo primitivo,
há indícios de que alguns Padres da Igreja e pensadores influentes admitiam a
possibilidade das vidas sucessivas como meio de purificação e justiça divina.
Contudo,
a partir do século VI, especialmente após o II Concílio de Constantinopla
(553), a doutrina foi oficialmente rejeitada pela Igreja. Essa decisão, envolta
em debates teológicos e influências políticas, permanece até hoje motivo de
controvérsias e reinterpretações.
À luz
da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, e com base em pesquisas
históricas confiáveis, analisamos esse episódio e suas implicações na
compreensão da reencarnação no pensamento cristão e ocidental.
1. A questão histórica dos Concílios
Entre
os quatro Concílios de Constantinopla (381, 553, 681 e 869), o que mais
diretamente tratou da preexistência das almas foi o de 553 — o II Concílio
de Constantinopla.
Diferentemente
de algumas versões populares, como a atribuída ao Dr. Hamendra Nath Banerjee,
não foi o Concílio de 381, mas o de 553 que condenou explicitamente a ideia da
reencarnação.
Sob a
forte influência do imperador Justiniano e, possivelmente, da imperatriz
Teodora, foi promulgado o primeiro dos quinze anátemas:
“Se alguém afirmar a
fabulosa preexistência das almas e a monstruosa restauração que dela se segue,
que seja anatematizado!”
Esse
decreto marcou a exclusão definitiva da reencarnação do corpo doutrinário
oficial da Igreja, configurando um divisor de águas entre o cristianismo
original e a teologia que se consolidaria na Idade Média.
2. Pais da Igreja e a ideia das vidas sucessivas
Antes
dessa condenação, diversos pensadores cristãos refletiram sobre a preexistência
das almas e a possibilidade das vidas múltiplas. Entre eles:
- Orígenes (185–253) — em De
Principiis, escreveu que as almas poderiam ser revestidas de novos
corpos conforme suas necessidades de progresso espiritual, à luz das
palavras de Jesus sobre as “muitas
moradas na casa de meu Pai” (Jo 14:2).
- São Gregório de
Nissa (335–395) — falava da purificação gradual da alma
através de diferentes estágios de existência.
- São Jerônimo (347–420) — reconheceu que a
doutrina das transmigrações era transmitida secretamente a um pequeno
número de iniciados.
- Santo Agostinho
(354–430)
— em suas Confissões (I, VI), questiona se não teria vivido
anteriormente em outro corpo.
Esses
registros demonstram que a ideia das vidas sucessivas não era alheia ao
pensamento cristão primitivo, embora não tenha alcançado unanimidade.
3. A influência política e o papel de Teodora
A
figura da imperatriz Teodora é frequentemente associada à repressão da
doutrina da reencarnação. Mulher de origem humilde e personalidade vigorosa,
teria exercido notável influência sobre Justiniano.
Mais
do que uma questão teológica, o repúdio à preexistência das almas refletia interesses
políticos e disputas de poder entre Roma e Constantinopla. O cristianismo
imperial buscava uniformidade doutrinária, e a ideia das múltiplas existências
parecia contrariar a noção de juízo final único e de autoridade eclesiástica
sobre a salvação.
4. O Espiritismo e a retomada da reencarnação
A Doutrina
Espírita, codificada por Allan Kardec a partir de 1857, restituiu à
humanidade a compreensão racional, moral e científica da reencarnação.
Em O
Livro dos Espíritos, especialmente nas questões 166 a 222, a pluralidade
das existências é apresentada como lei natural, essencial ao progresso
do Espírito e à justiça divina. Kardec fundamenta o ensino não em concílios ou
tradições humanas, mas na concordância universal dos ensinos dos Espíritos
superiores, verificada pelo método comparativo e racional.
Enquanto
a teologia medieval suprimiu o tema em nome da ortodoxia, o Espiritismo o
restabelece com clareza lógica, coerência moral e base
experimental, por meio das evidências mediúnicas e do raciocínio
filosófico.
Assim,
a reencarnação deixa de ser um dogma oculto ou heresia punida, tornando-se um
princípio natural que explica as desigualdades humanas, o destino das almas e o
progresso universal.
Conclusão
A
condenação da reencarnação no II Concílio de Constantinopla (553) não apagou os
vestígios de que ela já fazia parte do horizonte espiritual cristão primitivo.
A decisão representou mais um ato político que teológico, moldando por séculos
a visão oficial da Igreja sobre a alma e o destino humano.
O Espiritismo,
ao reintroduzir a reencarnação sob nova luz, realiza uma verdadeira síntese
entre razão e fé, mostrando que o amor e a justiça divina se expressam na
oportunidade constante de aprendizado e regeneração.
Como
ensinou Léon Denis, discípulo de Kardec:
“A reencarnação é a
chave que abre os horizontes da vida e ilumina os destinos humanos.”
Referências
- Allan Kardec — O
Livro dos Espíritos (1857)
- Allan Kardec — A
Gênese (1868)
- Allan Kardec — Revista
Espírita (1858–1869)
- Léon Denis — O
Problema do Ser e do Destino
- Léon Denis — Cristianismo
e Espiritismo
- Hans Stefan
Santesson — Tudo sobre a Reencarnação
- Mário Cavalcanti
Melo — Como os Teólogos Refutam
- Santo Agostinho — Confissões
- Orígenes — De
Principiis
- Enciclopédia
Católica
(Vatican, 2024)
- Almanaque Abril, 1978
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