sexta-feira, 10 de outubro de 2025

A REVISTA ESPÍRITA E A SOCIEDADE PARISIENSE DE ESTUDOS ESPÍRITAS A ORGANIZAÇÃO DO ESPIRITISMO COMO CIÊNCIA E FILOSOFIA MORAL
- A Era do Espírito -

Introdução

A fundação da Revista Espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), ambas sob a direção de Allan Kardec, representam marcos decisivos na consolidação do Espiritismo como corpo doutrinário organizado, científico e filosófico. Surgidas em meio a um contexto político e social conturbado da França do Segundo Império, essas instituições não apenas garantiram o desenvolvimento metódico das investigações espíritas, mas também asseguraram a unidade e a seriedade da nova doutrina que se difundia rapidamente pela Europa e pelo mundo.

Com base na Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec e nas informações históricas contidas na Revista Espírita (1858–1869), analisaremos a relevância dessas fundações para o pensamento espírita e sua contribuição ao diálogo entre ciência, filosofia e moral.

1. A Revista Espírita: Laboratório Doutrinário de Kardec

A Revista Espírita, lançada em janeiro de 1858, foi resultado de uma inspiração espiritual e da determinação pessoal de Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail). A obra nasceu sem qualquer apoio financeiro externo, como o próprio Codificador registra em Obras Póstumas: “Não tinha um único assinante e nenhum sócio capitalista. Fi-lo inteiramente aos meus riscos e perigos, e não me arrependi disso, porque o sucesso excedeu a minha expectativa.”

Essa publicação mensal se tornou o principal espaço de intercâmbio entre os grupos espíritas nascente e o Codificador, funcionando como verdadeiro “laboratório de observação” da Doutrina. Nela, Kardec testava hipóteses, analisava comunicações mediúnicas, relatava experiências e dialogava criticamente com as ciências de sua época. Cada edição trazia reflexões que ajudaram a consolidar a Codificação, preparando o terreno para obras como O Livro dos Médiuns (1861) e A Gênese (1868).

A Revista Espírita teve, portanto, dupla função: científica, ao registrar metodicamente os fenômenos mediúnicos, e filosófico-moral, ao demonstrar a coerência racional dos princípios espíritas. Kardec sabia que a doutrina precisava de um veículo que unisse “o sério e o agradável”, de modo a satisfazer tanto o público erudito quanto o leigo, mas sempre com base no estudo e na observação controlada — um princípio que caracteriza o “método espírita”.

2. A Fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE)

A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas foi fundada em 1º de abril de 1858, apenas três meses após o lançamento da Revista Espírita. Sua criação ocorreu num contexto político delicado. Após o atentado de Felice Orsini contra Napoleão III, em janeiro daquele ano, vigorava na França a chamada “Lei de Segurança Geral”, que proibia reuniões públicas com mais de vinte pessoas sem autorização expressa do Ministério do Interior.

Kardec, com prudência e discernimento, solicitou formalmente a permissão necessária, em carta endereçada ao Prefeito de Polícia de Paris e assinada com seu nome civil e pseudônimo: H. L. D. Rivail, dito Allan Kardec. A autorização foi concedida de forma surpreendentemente rápida — em quinze dias — graças à intervenção do general Charles-Marie-Esprit Espinasse, então Ministro do Interior e simpatizante das ideias espíritas, conforme relatado posteriormente na Revista Espírita de julho de 1859.

A SPEE passou a reunir-se inicialmente na Galeria de Valois, depois na Galeria Montpensier e, mais tarde, na Rua Sainte-Anne, n.º 59. Suas sessões contavam com a presença de médicos, literatos, oficiais, magistrados e estudiosos de diversas áreas. O objetivo, segundo Kardec, era “estudar e aprofundar todos os fenômenos que resultam das relações entre o mundo visível e o mundo invisível”, de forma metódica, desprovida de qualquer caráter religioso ou sectário.

Assim, a Sociedade se constituiu como o primeiro centro espírita do mundo, exemplo de organização e seriedade, e modelo para todos os grupos que se formariam nas décadas seguintes.

3. O Papel Científico e Filosófico da SPEE

A SPEE representou o primeiro esforço coletivo de aplicação prática do método experimental ao estudo dos fenômenos espirituais. Kardec insistia que não se tratava de uma seita, mas de uma sociedade científica dedicada à observação e análise dos fatos mediúnicos. Nas palavras registradas na Revista Espírita de maio de 1859, “a Sociedade procede aos seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiro porque é uma condição necessária para as observações; segundo, porque sabe o respeito que se deve àqueles que não vivem mais na Terra”.

Esse ambiente disciplinado e racional foi essencial para distinguir o Espiritismo das práticas místicas e supersticiosas que se misturavam ao espiritualismo da época. A SPEE buscava compreender as leis naturais que regem as manifestações dos Espíritos e suas relações com o mundo material — exatamente o que Kardec definiu, mais tarde, como o campo de estudo da “ciência espírita”.

Além do aspecto científico, a SPEE tinha também um propósito moral e educativo: promover o esclarecimento do homem sobre sua natureza espiritual e sua responsabilidade perante a vida. Nas sessões, predominavam temas como a imortalidade da alma, o progresso moral, as leis de causa e efeito e o papel da reencarnação — sempre analisados à luz da razão e do Evangelho.

4. A Dimensão Histórica e o Legado Doutrinário

Tanto a Revista Espírita quanto a SPEE consolidaram a base institucional e metodológica do Espiritismo. Juntas, permitiram que Kardec desenvolvesse e testasse, de forma controlada, as hipóteses que resultariam na Codificação Espírita. Elas foram também fundamentais para o reconhecimento do Espiritismo como doutrina universal, capaz de dialogar com a ciência e a filosofia sem se confundir com a religião formal.

Ainda hoje, mais de 165 anos depois, a Revista Espírita continua sendo leitura obrigatória para estudiosos e centros espíritas, pois nela se encontra o processo vivo da construção doutrinária. A SPEE, por sua vez, permanece como símbolo do espírito de pesquisa, disciplina e fraternidade que deve inspirar todos os grupos espíritas contemporâneos.

Num mundo cada vez mais marcado pela desinformação e pelo imediatismo, o exemplo de Kardec — que conciliou rigor metodológico com abertura moral e espiritual — permanece atual. Ele nos lembra que o Espiritismo é, acima de tudo, uma ciência de observação e uma filosofia de consequências morais, cujo progresso depende da união entre razão e sentimento, estudo e prática, fé e conhecimento.

5. A Atualidade do Modelo Espírita: Paralelos com os Centros Espíritas Modernos

Os centros espíritas de hoje, espalhados pelo mundo, são herdeiros diretos da estrutura e dos princípios que fundamentaram a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Embora as formas e os recursos tecnológicos tenham se transformado — com reuniões virtuais, transmissões online e maior alcance social — o modelo essencial concebido por Kardec permanece inalterado em seus objetivos e métodos.

Assim como a SPEE, os centros espíritas modernos têm por finalidade o estudo metódico da Doutrina Espírita, a prática da caridade moral e material, e o exercício disciplinado da mediunidade sob bases morais e científicas. A tríade estudo, prática e vivência reflete o mesmo espírito da SPEE, que unia a investigação racional à aplicação ética dos princípios cristãos.

A palestra doutrinária, o estudo sistematizado, as reuniões mediúnicas e o atendimento fraterno correspondem, em essência, às atividades que a SPEE já realizava: a educação da alma pela razão e pela moral. A diferença está apenas nos meios; o método e o ideal permanecem os mesmos.

Além disso, a Revista Espírita, em seu papel de divulgação e reflexão contínua, inspirou o trabalho editorial e educativo das instituições contemporâneas — revistas, periódicos, sites e plataformas digitais que hoje continuam a missão de esclarecer e divulgar o Espiritismo com base na Codificação.

Em tempos de superficialidade e imediatismo, o modelo espírita serve de antídoto contra o fanatismo e a desinformação. Ele nos recorda que o verdadeiro centro espírita é, antes de tudo, um centro de estudos e de transformação íntima, não um templo de ritos, mas uma escola da alma.

A SPEE foi, portanto, o primeiro “protótipo” dessa estrutura que hoje se multiplica pelo mundo, preservando o mesmo propósito essencial: o aperfeiçoamento moral do ser humano pela compreensão racional das leis espirituais.

Conclusão

A fundação da Revista Espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas constitui o ponto de partida da institucionalização do Espiritismo. Kardec, com visão pedagógica e científica, criou as bases que transformaram um conjunto disperso de fenômenos em uma doutrina estruturada, coerente e universal.

Os centros espíritas atuais, ao manterem o estudo sério, a prática da caridade e a vivência moral dos ensinamentos do Cristo, perpetuam a mesma filosofia que orientou Kardec e seus colaboradores na SPEE. Assim, mais de um século e meio depois, o Espiritismo permanece fiel à sua essência: uma doutrina de razão e amor, ciência e moral, que educa o Espírito para a vida eterna.

Referências

  • KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 2ª parte.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858–1869).
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
  • Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas – Regulamento Interno. Revista Espírita, maio de 1858.
  • Revista Espírita, artigos: “Um Oficial Superior Morto em Magenta” (junho de 1859) e “Encerramento do Ano Social” (julho de 1859).
  • PIRES, José Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: Paideia, 1975.
  • FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. Revista Espírita – edição comemorativa (1858–1869). Brasília: FEB, 2008.

 

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