Os Dois Cântaros
Um jovem
monge, entristecido por não conseguir reter na memória os ensinamentos
religiosos que recebia, procurou um sábio ancião em busca de ajuda. O velho
pediu que ele lavasse um dos dois cântaros vazios que havia em sua cela. Após
cumprir a tarefa, o sábio perguntou qual cântaro estava mais limpo. O jovem
respondeu que era o que acabara de lavar, embora a água já não estivesse mais
nele. Então o ancião explicou que o mesmo ocorre com quem ouve a palavra de
Deus: ainda que não memorize tudo, o coração se purifica como o cântaro lavado
pela água.
Introdução
Vivemos
numa era marcada pela pressa e pela dispersão. A velocidade da informação, as
múltiplas exigências da vida moderna e a constante estimulação sensorial têm
tornado cada vez mais difícil o exercício da escuta profunda e reflexiva.
No
contexto das atividades espíritas, essa dificuldade se manifesta na impaciência
de muitos frequentadores que, ao chegarem à Casa Espírita, desejam apenas
“tomar o passe” e ir embora, sem dar à alma o tempo necessário para ouvir,
refletir e assimilar os ensinos do Evangelho.
Entretanto,
à luz da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, a verdadeira renovação
espiritual não se realiza por atos automáticos ou rituais exteriores, mas por
meio do esforço consciente e da transformação interior. Jesus, ao dizer: “Quem
tem ouvidos de ouvir, ouça” (Mateus, 11:15), não se referia à audição
física, mas à capacidade de compreender com o coração e aplicar os ensinos
divinos na vida prática.
A palestra: momento de introspecção e sintonia
espiritual
A
palestra evangélico-doutrinária que antecede o passe não é um simples preâmbulo
formal. Trata-se de uma etapa essencial do tratamento espiritual, pois prepara
o campo mental e emocional do ouvinte para a recepção dos benefícios fluídicos.
Conforme
ensina a Revista Espírita (novembro de 1868), “a prece e a meditação são portas abertas à influência dos bons
Espíritos”. Da mesma forma, a palestra atua como uma prece coletiva que
harmoniza o ambiente e sintoniza as mentes com o plano superior.
Muitos
chegam à Casa Espírita perturbados, ansiosos ou dominados por pensamentos
negativos. O passe, sendo a transmissão de energias vitais e espirituais,
requer receptividade e sintonia interior. A mente dispersa, cheia de
divagações, assemelha-se a uma antena desregulada — incapaz de captar
integralmente as vibrações benéficas emitidas pelos Espíritos amigos.
A
palestra, portanto, tem a função de conduzir o frequentador à introspecção,
isto é, ao recolhimento e à reflexão sobre si mesmo e sobre os rumos da própria
vida. É o momento de silenciar o tumulto íntimo para que a alma possa ouvir a
voz serena da consciência e dos ensinamentos de Jesus.
Divagação e introspecção: caminhos opostos da alma
A
divagação é o movimento desordenado do pensamento, que salta de ideia em ideia
sem fixar-se em nada construtivo. É filha da inquietação e do automatismo
mental que caracteriza o homem moderno. Já a introspecção é o recolhimento
lúcido e ativo da consciência, que observa, analisa e busca compreender-se.
Enquanto
a divagação dispersa as forças psíquicas, a introspecção as concentra; enquanto
a primeira mantém o ser prisioneiro da superficialidade, a segunda abre caminho
à autotransformação.
A
palestra espírita, quando bem conduzida, é um convite à introspecção — não pela
imposição de ideias, mas pela inspiração do exemplo moral, pela clareza
racional da Doutrina e pela ternura dos ensinos de Jesus. Nesse estado de
sintonia interior, o Espírito se torna mais receptivo às vibrações do bem e ao amparo
dos Mensageiros divinos.
Os dois cântaros: o valor de ouvir com o coração
A antiga
parábola “Os dois cântaros”, relatada por Malba Tahan, ilustra de forma
simbólica a importância da escuta atenta e sincera. O jovem monge que não
conseguia memorizar as lições espirituais descobre, com a ajuda do mestre, que
mesmo sem reter as palavras, sua alma se purificava pelo simples ato de
ouvi-las com devoção.
Assim
como o cântaro que, embora não guardasse a água, permanecia limpo, também
aquele que ouve a palavra edificante, mesmo sem decorá-la, renova o coração e
clareia os pensamentos.
Na Casa
Espírita, cada palestra é uma oportunidade semelhante: ainda que não recordemos
integralmente as palavras, algo do conteúdo moral permanece, lavando a alma e
despertando sentimentos adormecidos. A escuta atenta é, portanto, um ato de
humildade e de abertura espiritual — condição indispensável para que os bons
Espíritos nos auxiliem de forma mais efetiva.
Conclusão
Jesus
continua a repetir: “Quem tem ouvidos de ouvir, ouça.” Ouvir, nesse
sentido, é mais do que escutar — é acolher, refletir e transformar.
A
palestra espírita, breve em duração mas profunda em propósito, representa um
momento sagrado de recolhimento e iluminação interior. Enquanto muitos buscam
apenas o alívio imediato pelo passe, esquecem-se de que o verdadeiro tratamento
espiritual começa no íntimo, quando o coração se dispõe a aprender e a
transformar-se.
A
palestra é, pois, o primeiro passo da cura espiritual: um convite à
introspecção que precede toda mudança duradoura e toda realização do Espírito
imortal em sua marcha para a luz.
Referências
- ALLAN KARDEC. O Evangelho Segundo o
Espiritismo. Cap. XXV – “Buscai e achareis.”
- ALLAN KARDEC. Revista Espírita.
Coleção completa (1858–1869).
- F. C. XAVIER, pelo Espírito Emmanuel.
Vinhas de Luz – “O povo e o Evangelho.”
- MALBA TAHAN. Lendas do Céu e da
Terra. Rio de Janeiro: Record, p. 10–11.
- LÚCIA AMARAL KFOURI. “Por que ouvir uma palestra
se o que quero é tomar passe?”
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