Introdução
Em tempos
de avanços científicos e desafios éticos, muitos ainda se inquietam diante das
aparentes injustiças da vida — sobretudo quando a dor se manifesta em seres
inocentes, como crianças nascidas com enfermidades graves. Esse questionamento,
de fundo moral e filosófico, ultrapassa o campo da medicina e adentra o terreno
da consciência e da fé.
No
contexto espírita, a resposta a tais indagações não se encontra em uma ideia de
punição arbitrária, mas na compreensão racional da Lei de Causa e Efeito e da
pluralidade das existências — princípios fundamentais da Doutrina Espírita
codificada por Allan Kardec.
O
presente artigo propõe uma reflexão sobre a conciliação entre ciência e
espiritualidade, razão e fé, tomando como ponto de partida o caso real de um
estudante universitário que, diante do sofrimento humano, buscou compreender a
justiça divina à luz do Espiritismo.
1. O Sofrimento e a Justiça Divina
Um
estudante questionou a justiça e a bondade de Deus diante do nascimento de
crianças com AIDS. Esse dilema moral, embora atual, é antigo. Desde os tempos
de Jesus, conforme o Evangelho de João (9:1-34), os discípulos também se
perguntavam sobre o cego de nascença: teria ele ou seus pais pecado? A resposta
do Mestre — “Nem ele pecou nem seus pais, mas para que nele se manifestem as
obras de Deus” — encerra profunda sabedoria, mostrando que o sofrimento não
é castigo, mas oportunidade de crescimento, reparação ou testemunho.
Allan
Kardec, em O Evangelho segundo o Espiritismo (cap. V, item 19), comenta
essa passagem destacando que há “expiações
que são provas escolhidas pelo Espírito, e não punições impostas”. Em
outras palavras, certas dores são instrumentos educativos através dos quais o
Espírito se depura e evolui.
Assim, a
justiça divina se manifesta não na igualdade das condições materiais, mas na
equidade moral das oportunidades de progresso. Cada existência é um capítulo
dessa pedagogia universal que visa à perfectibilidade do ser, e não à sua
condenação.
2. A Diversidade de Crenças e Atitudes
Mesmo em
ambientes de estudo e pesquisa, convivem diferentes concepções sobre o homem e
a vida: materialistas, incrédulos, espiritualistas e espíritas. Kardec já
analisava essas posições em O Livro dos Médiuns (1861, cap. III), ao
afirmar que o melhor método de ensino é aquele que “fala à razão antes que aos olhos”.
Os
materialistas, que veem o ser humano apenas como uma máquina biológica, ainda
se prendem a uma visão fragmentária da realidade. Já os espiritualistas, embora
intuam a existência de algo além da matéria, muitas vezes não aprofundam o
estudo filosófico das leis espirituais.
O
verdadeiro espírita, por sua vez, busca unir teoria e prática, razão e
sentimento, ciência e consciência, reconhecendo que a moral espírita é
instrumento de transformação íntima e social.
Essa
diversidade de visões repete, em essência, os comportamentos observados nos
contemporâneos de Jesus. Os fariseus, orgulhosos de sua posição intelectual e
religiosa, recusaram-se a aceitar a evidência do bem realizado, preferindo o
dogma à renovação. Hoje, atitudes semelhantes se manifestam quando a ciência
nega a dimensão espiritual da vida ou quando a religião se fecha à razão e ao progresso.
3. Ciência e Fé: Um Diálogo Necessário
O
Espiritismo não rejeita a ciência — ao contrário, dela se aproxima e com ela
dialoga. Kardec afirmou em A Gênese (1868) que “o Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente; a Ciência, sem
o Espiritismo, é impotente para explicar certos fenômenos; o Espiritismo, sem a
Ciência, careceria de apoio e controle”.
A
história da investigação científica oferece exemplos eloquentes dessa harmonia
possível. William Crookes, renomado químico e físico inglês, estudou os
fenômenos espíritas com rigor experimental entre 1870 e 1873. Diante da
incredulidade de seus pares, afirmou com firmeza: “Não digo que isso seja possível; afirmo que é uma verdade.” Sua
postura revela a coragem intelectual de quem reconhece que a busca da verdade
deve prevalecer sobre o preconceito acadêmico.
De modo
semelhante, Victor Hugo, sensível às manifestações espirituais, declarou que “evitar o fenômeno espírita é faltar ao
dever para com a verdade”. Tais exemplos demonstram que a conciliação entre
ciência e espiritualidade não é utopia, mas caminho natural do amadurecimento
humano, quando a inteligência se alia ao sentimento e ambos se orientam pela
verdade.
4. Humildade e Responsabilidade Moral do Saber
Em outra
situação, um estudante questionou se apresentar o currículo acadêmico de um
orador espírita não seria sinal de vaidade. A reflexão é válida e conduz à
essência do verdadeiro conhecimento. O Espiritismo ensina que o saber é uma
responsabilidade, não um título de glória pessoal.
Conforme O
Evangelho segundo o Espiritismo (cap. XVI, item 14), “o verdadeiro espírita reconhece-se pela sua transformação moral e
pelos esforços que emprega para domar suas más inclinações”. Assim, não há
incompatibilidade entre a atividade científica e a vivência espiritual — o
problema não está nos títulos, mas no uso que se faz deles.
O
autêntico servidor da verdade utiliza o saber como instrumento de serviço, não
de orgulho. O verdadeiro espírita não se envaidece de suas vantagens pessoais;
usa, mas não abusa dos bens e das oportunidades que lhe são concedidas, ciente
de que terá de prestar contas do emprego que lhes der.
Conclusão
O
sofrimento humano, a diversidade de crenças e o diálogo entre ciência e
espiritualidade são temas que desafiam a consciência moderna. À luz da Doutrina
Espírita, compreende-se que Deus é soberanamente justo e bom, e que nenhuma dor
é sem propósito.
Cada
existência é uma lição no vasto currículo da eternidade, onde aprendemos, passo
a passo, a transformar a ignorância em sabedoria e a revolta em amor. Em tempos
em que a razão e a fé ainda se confrontam, o Espiritismo oferece uma síntese
libertadora: o conhecimento científico esclarece o como, enquanto a
filosofia e a moral espíritas revelam o porquê e o para quê da
vida.
Assim,
ciência e consciência, quando unidas, tornam-se expressão da própria justiça
divina manifestando-se no progresso humano.
Referências
- Crookes, W. Fatos
Espíritas. 5ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1874.
- Kardec, A. O Livro dos
Médiuns. 59ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1861.
- Kardec, A. A Gênese.
27ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1868.
- Kardec, A. O Evangelho
Segundo o Espiritismo. 108ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1866. Cap. V,
item 19; Cap. XVI, item 14.
- Formiga, Luiz Carlos D. As
Ciências Biomédicas, os Doutores, o Espiritismo e os Cegos de Nascença.
Artigo.
- Revista Espírita (1858–1869), de Allan
Kardec — diversos volumes.
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