Introdução
O
vocabulário empregado no estudo dos fenômenos espirituais tem importância
decisiva na preservação da coerência doutrinária do Espiritismo. Palavras
imprecisas podem gerar interpretações errôneas, comprometendo a compreensão dos
princípios estabelecidos por Allan Kardec. Um dos exemplos mais comuns é o
termo “incorporação”, amplamente utilizado no meio espiritualista
brasileiro como sinônimo de manifestação mediúnica.
Embora
popular, esse termo não pertence ao léxico espírita. Ele sugere uma “entrada”
de um Espírito desencarnado no corpo do médium — ideia incompatível com as leis
de encarnação e de mediunidade estabelecidas na Codificação. O Espiritismo, ao
contrário, ensina que toda comunicação espiritual se dá por influência
fluídico-mental, sem substituição da alma encarnada. Este artigo propõe,
portanto, uma reflexão sobre a impropriedade do termo “incorporação”,
distinguindo-o de conceitos autênticos como encarnação, mediunidade
falante e possessão, à luz das obras de Allan Kardec e da Revista
Espírita (1858–1869).
1. A origem e o uso popular do termo “incorporação”
Etimologicamente,
“incorporação” deriva do latim incorporatio, que significa “tornar-se
corpo” ou “dar corpo a algo”. Em sentido comum, indica o ato de incluir ou
integrar algo em outra estrutura. No campo religioso, o termo passou a
expressar a ideia de um Espírito que “entra” no corpo de uma pessoa para se
manifestar — uma noção reforçada pela cultura popular e por representações
cinematográficas, como o clássico Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990).
No
Brasil, essa imagem simbólica foi incorporada (no sentido figurado) por
diversos segmentos espiritualistas, sendo aplicada indistintamente a diferentes
formas de mediunidade. Contudo, essa interpretação contraria os fundamentos
filosóficos e científicos do Espiritismo. Segundo O Livro dos Espíritos
(questão 473), o Espírito encarnado está ligado ao corpo por laços fluídicos
permanentes, impossíveis de serem substituídos por outro Espírito durante a
vida física. Assim, nenhum Espírito “entra” ou “toma posse” de um corpo alheio.
2. A terminologia espírita: médium falante e
psicofonia
Allan
Kardec, ao estudar as comunicações verbais dos Espíritos, utilizou o termo “médium
falante” (médium parlant) para designar aquele por meio do qual os
Espíritos se exprimem oralmente, atuando sobre seus órgãos vocais. Em algumas
traduções posteriores, o termo “incorporação” foi indevidamente inserido no
lugar de “médium falante” ou “médium de comunicação verbal”, com o objetivo de
tornar o texto mais acessível ao público leigo.
Essa
substituição, embora bem-intencionada, compromete a precisão conceitual da
Doutrina. Kardec jamais admitiu que o Espírito comunicante penetrasse o corpo
do médium. Ao contrário, explicou que a comunicação se dá por meio do
perispírito, que age como intermediário fluídico entre o Espírito e o corpo
físico. Esse processo é comparável a um circuito elétrico:
- o Espírito comunicante é o
emissor;
- o perispírito do médium é o
condutor;
- o corpo físico é o
instrumento final da manifestação.
Dessa
forma, o fenômeno é psicofônico, e não “incorporado”. O médium é
intérprete, não hospedeiro do Espírito comunicante.
3. A encarnação e a impossibilidade da substituição
espiritual
A
verdadeira “incorporação”, em seu sentido etimológico, é tratada por Kardec sob
o nome de encarnação. Em A Gênese (cap. XI, item 18), ele
descreve o processo pelo qual o Espírito se liga ao corpo físico durante a
concepção, por meio de laços fluídicos que o unem molécula a molécula ao
organismo em formação. Essa ligação é definitiva e só se desfaz com a morte.
Na
questão 345 de O Livro dos Espíritos, os Espíritos Superiores confirmam
que nenhum outro Espírito pode substituir o que foi destinado a determinado
corpo. Essa lei de individualidade e continuidade espiritual torna impossível a
hipótese de um Espírito “entrar” no corpo de outro ser encarnado, como sugere o
termo incorporação.
4. A possessão segundo o Espiritismo: dominação
fluídico-mental, não invasão
O
Espiritismo reconhece, entretanto, a existência da possessão,
compreendida como uma forma extrema de obsessão. Kardec aborda o tema na
questão 473 de O Livro dos Espíritos e o aprofunda em vários artigos da Revista
Espírita, especialmente em fevereiro e dezembro de 1863 e fevereiro de
1864.
A
possessão não consiste em uma entrada espiritual, mas em uma dominação
fluídico-mental, em que o Espírito obsessor exerce forte influência sobre o
perispírito do encarnado. Esse domínio pode ser tão intenso que o indivíduo
perde momentaneamente o controle de suas faculdades, mas o Espírito encarnado nunca
é desalojado do corpo.
O célebre
caso da Senhorita Júlia, relatado na Revista Espírita (dezembro
de 1863), ilustra essa distinção. Durante as manifestações, parecia que outro
Espírito “assumia” o corpo da jovem; contudo, a análise de Kardec demonstrou
que o fenômeno resultava de uma fusão fluídica entre o perispírito da médium e
o do Espírito obsessor, sem substituição espiritual. A libertação ocorreu não
por rituais, mas por doutrinação moral e prece, método que evidencia o
caráter racional e ético do Espiritismo.
5. A influência benéfica dos Espíritos superiores
É
importante destacar que a influência espiritual nem sempre é negativa. Quando
um Espírito elevado atua sobre um médium harmonizado moralmente, ocorre uma cooperação
fluídica benéfica, sem perda da consciência. Essa forma de sintonia,
chamada mediunidade inspirada ou psicofônica, caracteriza-se pela
comunhão de pensamentos e sentimentos, e não por invasão corporal.
6. A importância da precisão terminológica no
Espiritismo
Kardec
insistiu na necessidade de rigor terminológico como condição para a preservação
científica e filosófica da Doutrina Espírita. O uso indevido de termos como
“incorporação” favorece interpretações místicas ou animistas, distanciando o
Espiritismo de sua base racional.
A
terminologia correta — mediunidade falante ou psicofonia — traduz
fielmente o fenômeno descrito pelos Espíritos Superiores. O uso de palavras
precisas garante a integridade do ensino e evita que práticas de outras
tradições religiosas sejam confundidas com a metodologia espírita, que se
fundamenta no estudo, na razão e na moral cristã.
Conclusão
A análise
doutrinária demonstra que o termo “incorporação” não pertence à linguagem técnica
do Espiritismo e deve ser evitado em contextos espíritas. Ele sugere um
processo de invasão espiritual inexistente nas leis que regem a encarnação e a
mediunidade.
O
fenômeno corretamente descrito por Allan Kardec é o da mediunidade falante
ou psicofonia, no qual o Espírito comunicante age sobre o perispírito do
médium e este, por sua vez, transmite o pensamento através da palavra. Não há
“entrada” nem “substituição” espiritual, mas irradiação mental e sintonia
fluídica.
Compreender
e empregar corretamente os termos é respeitar a própria estrutura científica e
filosófica da Doutrina Espírita, cuja força está na clareza, na lógica e na
universalidade de seus princípios. O estudo racional da mediunidade é,
portanto, o melhor antídoto contra os equívocos terminológicos e as
interpretações místicas que ainda persistem em torno da palavra “incorporação”.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
86. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2023.
- ———. O Livro dos Médiuns.
73. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2023.
- ———. A Gênese. 55.
ed. Rio de Janeiro: FEB, 2023.
- ———. O Evangelho segundo
o Espiritismo. 94. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2023.
- ———. Instruções Práticas
sobre as Manifestações Mediúnicas. Paris, 1858.
- ———. Revista Espírita
(1858–1869). Rio de Janeiro: FEB, 2003.
- ERÁSTO e TIMÓTEO. Comunicação sobre os
médiuns escreventes. Revista Espírita, abril de 1861.
- HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
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