Introdução
O livro
de Eclesiastes, atribuído tradicionalmente ao rei Salomão, encerra uma
das mais profundas reflexões bíblicas sobre a transitoriedade da existência
humana e a busca de sentido na vida. No capítulo 12, versículos 6 a 8, o autor
sagrado convida o ser humano a “lembrar-se do Criador” antes que cheguem os
dias difíceis e a morte se imponha. Essa passagem, rica em simbolismo, descreve
poeticamente o desligamento do espírito em relação ao corpo, destacando a fragilidade
da matéria e a imortalidade da alma.
À luz da
Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, essa simbologia ganha nova
profundidade. A referência ao “cordão de prata”, que se rompe na morte, revela
uma intuição espiritual notável sobre o laço fluídico que une o corpo físico ao
Espírito — conceito amplamente desenvolvido na Codificação e confirmado pela
observação dos fenômenos mediúnicos.
O Cordão de Prata e a Emancipação da Alma
Eclesiastes
12:6 afirma:
“Antes que o cordão de prata se
rompa, e a tigela de ouro se quebre...”
Na
linguagem bíblica, o “cordão de prata” é uma metáfora do elo vital que une o
Espírito ao corpo. Segundo o Livro dos Espíritos (questões 93–95 e
257–259), esse elo é de natureza fluídica e é mantido por meio do perispírito,
o envoltório semimaterial que serve de intermediário entre a alma e a matéria.
Kardec descreve que, durante o sono ou o transe mediúnico, o Espírito pode
afastar-se parcialmente do corpo, mantendo-se ligado a ele por um laço fluídico
— o mesmo que se rompe definitivamente por ocasião da morte.
A Revista
Espírita (abril de 1858) confirma esse princípio ao relatar observações de
emancipação da alma durante o sono e de fenômenos de desprendimento espiritual
em pessoas moribundas, nas quais o cordão fluídico vai se enfraquecendo até a
completa libertação. Assim, o texto de Eclesiastes não apenas contém uma poesia
sobre a finitude humana, mas expressa uma verdade espiritual: a alma sobrevive
à decomposição do corpo e retorna ao plano espiritual, “a Deus, que a deu” (Ecl 12:7).
A Dissolução do Corpo e o Retorno do Espírito
O
versículo 7 declara:
“E o pó volte à terra, como era,
e o espírito volte a Deus, que o deu.”
Essa
afirmação contém, em essência, a lei da morte e da continuidade da vida
espiritual, como ensina o Espiritismo. Kardec explica em A Gênese
(cap. XI) que a morte não é senão a separação dos elementos materiais e
espirituais, cada um retornando à sua origem. O corpo, formado de elementos da
Terra, volta ao seu ciclo natural; o Espírito, liberto, prossegue sua
existência consciente em outro plano, conservando sua individualidade.
Portanto,
longe de ser o “fim”, a morte é um renascimento espiritual. Ela
representa a passagem para uma nova etapa evolutiva, na qual o Espírito colherá
os frutos de suas ações e preparará futuras reencarnações, conforme a lei de
causa e efeito. Essa compreensão racional e consoladora dissipa o temor da
morte e substitui o fatalismo pela esperança em um progresso contínuo e
infinito.
A Vaidade da Vida sem Propósito Espiritual
O
pregador conclui:
“Vaidade de vaidades, tudo é
vaidade.” (Ecl
12:8)
No
contexto original, “vaidade” deriva do latim vanitas, significando
“vazio”, “futilidade” ou “ilusão”. O autor bíblico constata que todas as
conquistas humanas — riqueza, poder, beleza ou prazer — são efêmeras diante da
morte.
O
Espiritismo amplia essa reflexão ao demonstrar que o verdadeiro valor da vida
não está na posse transitória, mas no aperfeiçoamento moral e intelectual do
Espírito. Conforme O Livro dos Espíritos (questão 922), a felicidade
real não depende das condições externas, mas do equilíbrio interior e da
consciência tranquila. Viver apenas para os bens materiais é, portanto, viver
na “vaidade das vaidades”, pois tudo o que é material perece, enquanto o que é
espiritual permanece.
Na Revista
Espírita (dezembro de 1860), Kardec comenta que “o homem, ao apegar-se à matéria, constrói castelos sobre areia
movediça”, esquecendo-se de que sua verdadeira pátria é o mundo espiritual.
O Espiritismo convida, assim, à vivência lúcida e equilibrada na Terra,
valorizando as oportunidades de crescimento moral sem perder de vista a
finalidade maior da existência.
Conclusão
O texto
de Eclesiastes 12:6–8, quando analisado sob a luz da Doutrina Espírita,
revela-se mais do que uma meditação sobre a brevidade da vida: é um convite à consciência
espiritual. O “cordão de prata” simboliza o vínculo sagrado entre o corpo e
o Espírito; a “tigela de ouro” e a “jarra quebrada” representam a dissolução do
organismo; e a expressão “tudo é vaidade” lembra que apenas o que se edifica no
amor e na sabedoria possui valor eterno.
Lembrar-se
do Criador “nos dias da juventude” significa cultivar desde cedo uma vida
orientada por princípios espirituais, que deem sentido à existência e
serenidade diante da morte. Como ensina o Espírito de Verdade, em O
Evangelho Segundo o Espiritismo (cap. VI, item 5):
“Espíritas! Amai-vos, este o
primeiro ensinamento; instruí-vos, este o segundo.”
Amor e
conhecimento — eis o antídoto contra a vaidade do mundo e o caminho para o
retorno consciente a Deus, que é o destino de todos os Espíritos.
Referências
- Bíblia Sagrada, Eclesiastes 12:6–8.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
73. ed. FEB, 2023.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 41. ed.
FEB, 2023.
- KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o
Espiritismo. 89. ed. FEB, 2023.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita
(1858–1869). Ed. FEB.
- PIRES, José Herculano. O Espírito e o Tempo.
9. ed. Paideia, 2011.
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