Introdução
A
palavra estigma remonta à Antiguidade, significando originalmente uma
marca no corpo — física ou simbólica — que distinguia um indivíduo dos demais.
Com o tempo, o termo passou a expressar uma marca social, invisível, mas
profundamente real: o preconceito. Na sociedade contemporânea, o estigma atua
como um mecanismo de exclusão e julgamento, afetando grupos e pessoas por suas
condições físicas, mentais, econômicas, comportamentais ou espirituais.
Segundo
a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 25% da população mundial
sofrerá algum transtorno mental ao longo da vida, e o estigma é um dos
principais fatores que impedem o acesso ao tratamento. Situação semelhante se
observa em relação à pobreza, à orientação sexual, às deficiências e à condição
de rua — em todos esses casos, a marca simbólica do preconceito isola, fere e
nega humanidade.
À luz
da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, a questão do estigma
ultrapassa o campo social: ela revela o grau de maturidade moral do Espírito e
o quanto a humanidade ainda precisa aprender sobre a lei de amor, justiça e
caridade que rege a vida.
1. O estigma como expressão do orgulho e do egoísmo
Em O
Livro dos Espíritos, questão 785, Kardec pergunta: “Qual o maior obstáculo
ao progresso moral?” Os Espíritos respondem: “O orgulho e o egoísmo.” O estigma social nasce exatamente dessa
raiz dupla: o orgulho que julga e o egoísmo que exclui. Ao rotular o outro como
inferior, o ser humano revela o quanto ainda está preso à ilusão das
aparências.
Na Revista
Espírita (junho de 1861), Allan Kardec analisa o comportamento social
diante dos chamados “miseráveis” da Terra e afirma que “a miséria moral é maior que a material, porque nasce da ignorância e
do desdém pelo próximo.” O estigma, nesse sentido, é uma forma moderna de
miséria moral: um mecanismo pelo qual a sociedade tenta se distanciar daquilo
que teme ou não compreende.
2. O olhar de Jesus sobre os estigmatizados
Nos
Evangelhos, Jesus exemplificou uma postura radicalmente oposta à cultura do
estigma. Ele tocou leprosos, conversou com publicanos, defendeu adúlteras e
acolheu estrangeiros — todos considerados “impuros” pela sociedade de sua
época. Sua conduta rompeu fronteiras religiosas e sociais, demonstrando que o
verdadeiro valor do ser humano reside no Espírito imortal, e não nas
circunstâncias exteriores.
Em O
Evangelho segundo o Espiritismo (cap. XI), a Doutrina Espírita
interpreta o ensinamento “Amai-vos uns aos outros” como fundamento essencial da
regeneração moral da humanidade. Nesse capítulo, destaca-se que o amor é a
força capaz de dissolver o estigma, porque neutraliza o julgamento e desperta a
empatia, conduzindo o ser humano à verdadeira fraternidade. Ver o outro como irmão
é reconhecer nele a centelha divina, independentemente de suas limitações ou
escolhas.
3. Estigmas modernos e desafios espirituais
No
século XXI, novos estigmas se somam aos antigos. Pessoas com transtornos
mentais, dependência química, doenças crônicas, histórico prisional, orientação
sexual diversa ou condições econômicas precárias enfrentam formas sutis e
persistentes de exclusão.
A OMS
e o Ministério da Saúde brasileiro destacam que o estigma é uma das
principais barreiras para o tratamento da depressão e da dependência química
— duas condições que estão entre as maiores causas de sofrimento emocional e
suicídio no mundo.
Do
ponto de vista espírita, esses quadros refletem provas e expiações do
Espírito em sua trajetória evolutiva. Entretanto, isso não justifica o
julgamento; ao contrário, convida à compaixão. Como ensina Emmanuel, em O
Consolador (questão 341):
“Toda dor merece
respeito. O sofrimento alheio é um chamado à fraternidade, e não à censura.”
A
estigmatização, portanto, é uma negação da fraternidade. Ao marginalizar o
outro, impedimos não apenas seu progresso, mas também o nosso, pois nos
afastamos da lei de amor que sustenta o universo moral.
4. Estigma, mediunidade e fenômenos espirituais
Curiosamente,
o termo estigma também possui uma acepção espiritual específica: designa
marcas físicas ou sutis que podem aparecer em médiuns de efeitos físicos ou em
fenômenos religiosos, como as chamadas “chagas do Cristo”. Na Revista
Espírita (abril de 1862), Kardec comenta casos de “estigmas espontâneos” em
médiuns piedosos, esclarecendo que essas marcas não têm valor de santidade
em si mesmas, mas expressam a sensibilidade do médium e sua sintonia moral.
Assim,
há dois tipos de estigma: o físico, que pode surgir como fenômeno espiritual
legítimo; e o social, que é fruto do julgamento humano. O primeiro pode elevar
o Espírito; o segundo, rebaixar a sociedade.
5. Superar o estigma: uma proposta espírita
O
Espiritismo propõe uma revolução moral silenciosa para combater o
estigma: a educação dos sentimentos. O preconceito nasce da ignorância
espiritual; portanto, sua cura está no conhecimento aliado à prática do amor.
Três
atitudes espíritas podem auxiliar na superação do estigma:
- Educar a
consciência
— compreender que todos somos Espíritos imortais em diferentes graus de
aprendizado, e que as diferenças humanas são apenas temporárias.
- Exercitar a empatia — colocar-se no
lugar do outro e buscar compreendê-lo sem julgamentos, lembrando que todos
trazemos nossas próprias marcas, visíveis ou invisíveis.
- Praticar a caridade
moral
— expressa no respeito, na escuta e na valorização do próximo, como ensina
Kardec no capítulo XV de O Evangelho segundo o Espiritismo: “Fora da caridade não há salvação.”
Quando
a sociedade adota a caridade como princípio, o estigma perde sua força, e a
dignidade humana é restaurada.
Conclusão
O
estigma, seja religioso, social ou psicológico, é sempre uma marca imposta pela
ignorância. Sob a luz da Doutrina Espírita, reconhecemos que todos os Espíritos
carregam cicatrizes do passado, mas também o potencial infinito de regeneração.
O caminho da evolução é o da inclusão, e não o do julgamento.
Combater
o estigma é, portanto, um ato profundamente cristão e espírita. É ver no outro,
não o erro, mas a oportunidade de amar. Como ensinou Jesus, “não julgueis, para que não sejais julgados”,
pois o que hoje é motivo de crítica pode ser, amanhã, a nossa própria lição de
humildade.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. Paris, 1857.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho segundo o Espiritismo. Paris, 1864.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita (1858–1869). Paris.
- XAVIER, Francisco
Cândido (por Emmanuel). O Consolador. FEB, 1940.
- Organização Mundial
da Saúde (OMS). World Mental Health Report: 2023 Update.
- Ministério da
Saúde. Boletim de Saúde Mental e Estigma no Brasil, 2024.
- GOFFMAN, Erving. Estigma:
Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. LTC, 2022.
- Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Desigualdade e Estigmatização
Social no Brasil. 2024.
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