domingo, 19 de outubro de 2025

O PRINCÍPIO INTELIGENTE E OS REINOS DA NATUREZA
UMA ANÁLISE DOUTRINÁRIA À LUZ DA CODIFICAÇÃO ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

Introdução

Entre as frases mais difundidas nos meios espíritas, uma das mais conhecidas é:

“A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem.”

Com frequência, atribui-se essa máxima a Léon Denis. No entanto, Denis jamais a formulou assim. A expressão autêntica, em O Problema do Sere do Destino, é mais precisa e doutrinariamente coerente:

“Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente.”

A diferença não é apenas de estilo, mas de conceito doutrinário. Enquanto a versão popular sugere uma alma atuante desde o mineral, Denis — em conformidade com Kardec — inicia a gradação evolutiva no reino vegetal. Surge, então, a questão central: há, de alguma forma, atividades do princípio inteligente nos minerais?

À luz da Codificação Espírita, a resposta é não. A seguir, analisamos o tema com base em O Livro dos Espíritos, A Gênese e na Revista Espírita, comparando ainda com o poema “Urânia” (novembro de 1859), onde se aborda poeticamente a harmonia universal sem confundir a matéria inerte com o princípio espiritual.

1. O princípio inteligente e os limites da matéria inerte

Em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec classifica os seres da Natureza em três ordens fundamentais (questões 71, 585 e 585a):

  1. Os seres inanimados, desprovidos de vitalidade e inteligência — o reino mineral;
  2. Os seres animados não pensantes, dotados de vitalidade, mas sem inteligência — o reino vegetal;
  3. Os seres animados pensantes, dotados de vitalidade e princípio inteligente — o reino animal e o homem.

Essa divisão é decisiva: o reino mineral não possui vitalidade nem princípio inteligente. Kardec explica que “a alma não pode habitar um corpo privado de vida orgânica” (LE, q. 136a), e que os minerais possuem apenas “força mecânica”, não “vida” nem “inteligência”.

Portanto, a matéria inerte é apenas o campo de ação, o instrumento passivo de transformação da Natureza, e não um estágio evolutivo do espírito.

2. Instinto e inteligência: gradações do princípio espiritual

Em A Gênese (cap. III, “O Bem e o Mal”), Kardec afirma que o instinto é “uma espécie de inteligência rudimentar” presente em todos os seres orgânicos. Esse instinto é o primeiro indício da atividade do princípio inteligente, mas só se manifesta em organismos vivos.

Nas plantas, o instinto se revela em suas tendências automáticas — como buscar luz ou umidade —; nos animais, torna-se mais elaborado, aproximando-se da inteligência; e no homem, adquire consciência e razão.

Assim, o progresso do princípio espiritual requer um corpo organizado, vitalizado, apto a servir de instrumento ao aprendizado. Isso exclui qualquer forma de “vida psíquica” no mineral.

3. A união progressiva do Espírito e da matéria

Em A Gênese, capítulo XI, Kardec é explícito:

“Deus, em lugar de unir o Espírito à pedra rígida, criou, para seu uso, corpos organizados, flexíveis e capazes de receber todos os impulsos de sua vontade.”

Esse trecho é conclusivo: a pedra não é invólucro do Espírito. O princípio inteligente não evolui na matéria bruta, mas atua sobre ela, organizando-a e transformando-a conforme progride. O mineral é, portanto, objeto do trabalho do Espírito, e não o meio de seu desenvolvimento.

Assim, a pedra, ainda que bela e útil no conjunto da criação, não contém em si atividade do princípio espiritual.

4. O poema “Urânia” e a harmonia universal

O poema “Urânia”, publicado na Revista Espírita (novembro de 1859), exalta a grandeza do Cosmo e a presença divina em todas as coisas. Nele, se comenta que “a harmonia universal é a expressão da sabedoria eterna”, e que os astros, montanhas e oceanos “obedecem ao pensamento divino”.

Entretanto, essa obediência é mecânica e não consciente. Kardec vê a Natureza como reflexo da Inteligência Suprema, mas não atribui consciência ou princípio inteligente aos corpos inorgânicos. “Urânia” é, portanto, uma exaltação poética da ordem divina, não uma declaração de vitalismo mineral.

5. Interpretações posteriores e prudência doutrinária

Autores espirituais como André Luiz, em Evolução em Dois Mundos e No Mundo Maior, empregam expressões simbólicas como “consciência em germinação no mineral”. Tais imagens, embora belas, devem ser compreendidas como metáforas de continuidade cósmica, não como afirmação literal de vida psíquica em minerais.

Como adverte Kardec na Revista Espírita (novembro de 1868):

“O Espiritismo marcha com a ciência, mas não a substitui; não deve aceitar como princípio o que ainda é simples hipótese.”

A fidelidade à Codificação requer, portanto, distinguir entre o ensino doutrinário universalmente confirmado e o complemento simbólico ou poético de autores espirituais posteriores.

6. Conclusão

À luz dos ensinos de Allan Kardec, não há atividade do princípio inteligente nos minerais. A pedra é matéria inerte, instrumento de trabalho do Espírito, mas não sede de sua evolução.

O princípio inteligente só se manifesta nos seres orgânicos, avançando do instinto vegetal à inteligência animal, até despertar plenamente no homem.

A célebre síntese de Léon Denis — “Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; no homem, desperta” — expressa com fidelidade a filosofia espírita e preserva sua coerência científica e moral.

Assim, o Espiritismo reafirma a harmonia e a continuidade da Criação sem confundir o campo material com o princípio espiritual que o anima.

Referências

  • ALLAN KARDEC. O Livro dos Espíritos. 1ª ed., 1857.
  • ALLAN KARDEC. A Gênese. Capítulos III e XI.
  • ALLAN KARDEC. Revista Espírita (nov. 1859 e nov. 1868).
  • LÉON DENIS. O Problema do Ser e do Destino (1908).
  • ANDRÉ LUIZ (Espírito). No Mundo Maior; Evolução em Dois Mundos. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.
  • PAULO DA SILVA NETO SOBRINHO. “A Alma Dorme no Mineral?” Revista Espiritismo & Ciência, ano 4, nº 46.

 

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