Introdução
O
ensinamento evangélico “Não saiba a vossa
mão esquerda o que faz a direita” (Mateus 6:3) representa uma das mais
profundas lições sobre a pureza das intenções no bem. Ao longo dos séculos, a
humanidade tem refletido sobre o significado do verdadeiro altruísmo,
questionando até que ponto a caridade é um gesto de amor desinteressado ou uma
forma disfarçada de vaidade. A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec,
oferece uma leitura lúcida e racional dessa virtude, indicando que o valor
moral de uma ação está, sobretudo, na intenção que a inspira.
A caridade como expressão do progresso moral
No Evangelho
segundo o Espiritismo, Kardec afirma que “fora da caridade não há salvação”, estabelecendo-a como princípio
fundamental da evolução espiritual. Contudo, a caridade, enquanto virtude, não
se resume ao ato material de dar algo — seja dinheiro, alimento ou abrigo —,
mas à disposição íntima de servir com benevolência e sem interesse pessoal.
Os
Espíritos superiores explicam que o bem verdadeiro é aquele que nasce do
coração, desprovido de qualquer cálculo de recompensa, seja ela material, moral
ou espiritual. Assim, ainda que um gesto exteriormente grandioso possa comover
as multidões, somente o sentimento que o anima determinará o seu valor perante
a lei divina.
A
modernidade, no entanto, tem colocado novos desafios à compreensão desse
princípio. Com o advento das redes sociais e da exposição constante, muitos
atos de caridade são acompanhados de registros e divulgações públicas. Surge,
então, a dúvida: é moralmente válido o bem que se faz diante das câmeras?
A intenção sobre a aparência
A
sabedoria de um antigo rabino, que classificou oito níveis da caridade, ajuda a
compreender esse dilema moral. Segundo ele, o mais baixo nível é aquele em que
alguém doa de má vontade e busca reconhecimento público; o mais elevado é o ato
em que o doador não sabe quem recebe, e o beneficiado ignora quem deu. Entre
ambos, há uma gradação de intenções, revelando que a verdadeira caridade se
aperfeiçoa à medida que se liberta do orgulho.
Contudo,
o mesmo rabino propõe uma reflexão essencial: se todos dessem, ainda que de má
vontade, o sofrimento no mundo seria menor. Essa observação nos conduz à
compreensão espírita de que o bem, independentemente do grau de pureza com que
é realizado, gera sempre consequências positivas.
Em A
Gênese, Kardec ensina que “todo
esforço para o bem é um passo dado no caminho do progresso”. Assim, o ato
de doar — mesmo quando imperfeito — contribui para o adiantamento moral de quem
o pratica, porque exercita a solidariedade, ainda que de modo inicial.
O aprendizado do bem
Na
perspectiva espírita, a caridade é uma escola e nós, aprendizes. Cada gesto de
auxílio, ainda que rudimentar, representa uma lição na arte de amar. Como em
qualquer processo educativo, há graus de aprendizado: uns ainda se encontram
nas primeiras letras do amor fraterno, outros já avançaram no entendimento do
desinteresse e da compaixão.
A
prática do bem, portanto, deve ser compreendida como um caminho pedagógico.
Quem doa para ser visto talvez esteja apenas começando a despertar para a
importância de sair de si mesmo; mais tarde, perceberá que o verdadeiro mérito
está em servir discretamente. O Espírito aprende, pela experiência e pelo
tempo, que a felicidade maior não está em ser reconhecido, mas em sentir-se
útil.
Doar sem tirar nada
Kardec
e os Espíritos superiores enfatizam que a verdadeira caridade “não humilha aquele que a recebe”. Doar
sem ferir a dignidade do outro é um exercício de empatia e respeito. A doação
que diminui ou constrange o beneficiado não é um gesto de amor, mas de
superioridade disfarçada.
Por
isso, o Espiritismo propõe que aprendamos “a
dar sem tirar nada” — isto é, ajudar sem exigir gratidão, sem esperar
retorno, sem destacar o próprio nome. Trata-se do nível mais elevado do amor,
aquele em que o bem se torna natural, espontâneo e silencioso, tal como as
flores que perfumam o ambiente sem jamais dizer: “Veja o que faço”.
Conclusão
Ao
invés de julgar a forma como o outro realiza o bem, é mais útil reconhecer que
cada gesto de auxílio, por menor ou imperfeito que seja, contribui para
diminuir as dores do mundo. O progresso moral não se faz por decretos, mas por
tentativas, erros e recomeços.
A
Doutrina Espírita nos convida a compreender o bem como um exercício evolutivo.
Hoje, talvez doemos com certo interesse ou desejo de aprovação; amanhã,
aprenderemos a servir por amor puro, porque o bem feito ao outro é sempre, no
fundo, um bem feito a nós mesmos.
Como
ensinou Jesus, o verdadeiro tesouro está no coração. E quando o amor se torna o
móvel de nossas ações, pouco importa se a mão esquerda viu ou não o que fez a
direita — porque, então, ambas agem sob a mesma luz da caridade.
Referências
- Allan Kardec, O
Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIII – “Não saiba a vossa mão
esquerda o que faz a direita”.
- Allan Kardec, A
Gênese, cap. XVII – “Os tempos são chegados”.
- Revista Espírita, Allan Kardec,
anos 1858–1869, diversos artigos sobre caridade e moral cristã.
- Rachel Naomi Remen,
As bênçãos do meu avô, cap. “Agindo da maneira certa”, Ed.
Sextante.
- Momento Espírita, “Agindo da
maneira certa”, disponível em: momento.com.br/pt/ler_texto.php?id=7528&stat=0.
Nenhum comentário:
Postar um comentário