Introdução
A
complexidade da obra divina desafia o entendimento humano. O bem e o mal, a dor
e o progresso, a fé e a dúvida — aparentes contradições da existência — são, na
verdade, expressões complementares de uma mesma lei universal: o progresso.
Desde Hegel, a filosofia reconhece no movimento dialético (tese, antítese e
síntese) o processo pelo qual a consciência se desenvolve. A Doutrina Espírita,
codificada por Allan Kardec, aprofunda essa visão ao demonstrar que a evolução
do Espírito ocorre por meio das experiências sucessivas da vida corporal e
espiritual, conduzindo-o, gradualmente, à perfeição.
À luz do
Espiritismo, a harmonia universal não é estática: resulta do equilíbrio
dinâmico das forças e contrastes que regem a Criação. Cada conflito aparente —
seja na história humana, na moral individual ou nas crenças religiosas — é um
estágio transitório na edificação do Reino de Deus, entendido não como um
lugar, mas como um estado de consciência iluminada.
1. A Harmonia dos Contrários e a Lei de Progresso
Em A
Gênese (cap. I), Allan Kardec afirma que “a harmonia universal resulta da variedade dos elementos que a compõem”.
Essa afirmação sintetiza o princípio de que a diversidade é instrumento da
unidade divina. O caos aparente é apenas a face transitória de uma ordem mais
profunda, que se revela à medida que o Espírito se eleva moral e
intelectualmente.
J.
Herculano Pires, em O Reino, denomina de “atalhos do Reino” as
diferentes expressões religiosas e ideológicas que marcam a caminhada humana.
Embora muitas vezes pareçam contraditórias, todas convergem para o mesmo
destino: a educação integral do Espírito. A Doutrina Espírita reconhece o valor
relativo de cada crença, pois, conforme ensina Kardec na Revista Espírita
(julho de 1868), “todas as crenças são
úteis quando conduzem ao bem”.
Essa
concepção dissolve o dualismo entre verdade e erro, mostrando que até as
distorções religiosas e filosóficas têm função pedagógica na ascensão espiritual
da humanidade. O mal, o sofrimento e o erro não são fins em si mesmos, mas
degraus no aprendizado da lei divina.
2. O Episódio de Ananias e Safira: Leitura Espírita
da Causa e Efeito
O
capítulo 5 de Atos dos Apóstolos apresenta o episódio de Ananias e
Safira, tradicionalmente interpretado como um castigo divino. À luz do
Espiritismo, entretanto, o fato revela a aplicação imediata da Lei de Causa e
Efeito, princípio que assegura a justiça e a harmonia universal.
Ao mentirem
deliberadamente sobre o valor de uma propriedade, buscando aparentar virtudes
inexistentes, Ananias e Safira romperam o equilíbrio vibratório do próprio ser.
O desequilíbrio moral gerou intensa perturbação fluídica, afetando o
perispírito e, por consequência, o corpo físico — o que explica a morte súbita
do casal não como punição divina, mas como reação natural de uma consciência em
conflito.
Conforme O
Livro dos Espíritos (questão 741), “a
causa primária do mal está no egoísmo e no orgulho”. O episódio simboliza,
assim, a autodestruição das máscaras morais e a necessidade da sinceridade
espiritual como base do Reino de Deus.
Ainda no
mesmo capítulo, o poder curativo da sombra de Pedro (Atos 5:15) e a libertação
dos apóstolos por um “anjo do Senhor” (Atos 5:19) ilustram fenômenos mediúnicos
descritos e analisados por Kardec na Revista Espírita (1858–1869): a
ação dos Espíritos benevolentes sobre a matéria e a irradiação dos fluidos
espirituais por meio de médiuns em sintonia com o bem.
3. A Religião e a Ciência na Convergência do Reino
A
Doutrina Espírita reconcilia ciência, filosofia e religião sob o prisma da
razão espiritual. Em vez de impor dogmas, ela propõe uma visão evolutiva da fé:
a crença amadurece à medida que a inteligência se ilumina.
Em A
Gênese, Kardec explica que as religiões, mesmo as imperfeitas, “preparam o terreno para a verdade”. A
Providência se serve de todas as formas de pensamento para conduzir o homem ao
bem. Da mesma forma, Herculano Pires observa que as ideologias e tradições
culturais, embora transitórias, cumprem papel formador na consciência coletiva.
Hoje, com
o avanço da ciência e o surgimento de novas questões éticas — como a
inteligência artificial, a biotecnologia e as desigualdades sociais globais —,
a humanidade é convidada a vivenciar o Espiritismo não como teoria, mas como
ética universal. A verdadeira fé, ensina O Evangelho segundo o Espiritismo
(cap. XIX), é aquela que “encara a razão
face a face em todas as épocas da humanidade”.
4. O Reino de Deus: Construção Interior e Coletiva
O Reino
de Deus é, essencialmente, um estado de consciência. Ele se inicia na transformação
íntima e se amplia na vida social, tornando-se uma obra coletiva. À medida que
o Espírito desperta para sua imortalidade, compreende que a fraternidade, a
justiça e a solidariedade não são virtudes opcionais, mas leis naturais da
existência.
O
Evangelho segundo o Espiritismo (cap. XVII, “Sede Perfeitos”) ensina que a
perfeição moral é a meta suprema da alma, e o amor, o meio de alcançá-la.
Emmanuel, em A Caminho da Luz, descreve o progresso espiritual da
humanidade como um “curso divino” que conduz, de encarnação em encarnação,
todos os seres ao mesmo destino de luz.
No século
XXI, essa construção interior assume dimensão coletiva: famílias, escolas e
instituições espíritas são hoje espaços de preparação moral para a regeneração
da Terra. A educação espiritual, aliada ao conhecimento científico e à prática
do bem, constitui o alicerce do Reino em construção.
Conclusão
O
Espiritismo nos oferece a síntese superior dos “atalhos do Reino”. Ele não
anula as diferenças, mas as integra sob a lei de amor e progresso. Nenhuma alma
se perde, pois Deus é soberanamente justo e bom.
Como
ensina Herculano Pires, compreender o Reino de Deus é perceber que todas as
experiências humanas — crenças, erros, dores e descobertas — são fios de uma
mesma tapeçaria cósmica tecida pelo Amor Divino.
A
Doutrina Espírita revela que o progresso é lei, e o amor, seu motor. Assim, por
mais tortuosos que pareçam os caminhos da humanidade, todos convergem para um
mesmo destino luminoso: o Reino da consciência desperta, onde o homem
compreenderá, enfim, que amar é a forma mais elevada de saber.
Referências
- Allan Kardec. O Livro dos Espíritos.
Paris, 1857.
- Allan Kardec. O Evangelho segundo o
Espiritismo. Paris, 1864.
- Allan Kardec. A Gênese. Paris,
1868.
- Allan Kardec. Revista Espírita
(1858–1869).
- J. Herculano Pires. O Reino, cap. VII –
“A Confluência”.
- Emmanuel (psicografia de
Chico Xavier). A
Caminho da Luz. FEB, 1939.
- O Novo Testamento. Atos dos Apóstolos,
cap. 5.
- G. W. F. Hegel. Fenomenologia do
Espírito. 1807.
- Pitágoras. Fragmentos.
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