Um homem procurou Sócrates para contar-lhe algo
grave sobre outra pessoa. Antes de ouvi-lo, o filósofo perguntou se a
informação havia passado pelos “três crivos”: o da verdade,
o da bondade
e o da utilidade.
O visitante admitiu que não tinha certeza se o fato era verdadeiro, que não era
bom e tampouco útil. Então Sócrates concluiu que nada valia a pena ser dito,
ensinando que não devemos espalhar o que não é verdadeiro, bom ou
útil, pois a maledicência não traz benefício algum.
Introdução
A célebre parábola dos Três Crivos de Sócrates,
imortalizada nas páginas do Espiritismo por meio da pena mediúnica de Francisco
Cândido Xavier (Irmão X – Humberto de Campos), oferece um ensinamento de
profunda atualidade moral e espiritual. Em um tempo em que a comunicação humana
se dá de forma instantânea e global, o discernimento ético no uso da palavra —
falada, escrita ou digital — tornou-se um imperativo de evolução coletiva. A
Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec, reforça essa lição socrática ao
situar a palavra como expressão do pensamento e instrumento de responsabilidade
moral, capaz de construir ou destruir, consolar ou ferir, esclarecer ou
confundir.
1. A Palavra como Expressão do
Espírito
Para o Espiritismo, o verbo humano é reflexo direto
do estado íntimo do Espírito. “Pela
palavra, o homem revela o que é”, poderíamos resumir à luz da Codificação.
Em O Livro dos Espíritos (questões 919 e 919-a), Kardec e os Espíritos
Superiores ensinam que o autoconhecimento é a base da transformação moral, e
que o indivíduo prudente deve observar seus atos, intenções e reações. A
palavra, nesse contexto, é um espelho do caráter.
Em tempos de redes sociais, o pensamento se
materializa quase instantaneamente em comentários, postagens e opiniões
públicas. O “pensar antes de falar” —
ou de escrever — converte-se em “passar
pelo crivo da consciência antes de publicar”. Assim, o ensinamento
socrático adquire uma nova dimensão: o uso ético da palavra é, em última
instância, o exercício da responsabilidade espiritual no mundo contemporâneo.
2. O Crivo da Verdade: A Luz que
Dissipa a Sombra da Falsidade
O primeiro crivo proposto por Sócrates — o da
verdade — corresponde, no Espiritismo, à fidelidade à realidade e à busca
sincera pelo esclarecimento. Kardec, em O Livro dos Médiuns, adverte
contra os perigos da leviandade e da precipitação no julgamento das
comunicações e dos fatos espirituais. O mesmo princípio aplica-se à vida
cotidiana: a palavra sem verdade gera confusão, espalha incertezas e fomenta
desconfiança.
No mundo atual, onde as “fake news” (notícias falsas)
e a desinformação se multiplicam, o crivo da verdade é um antídoto moral e
social. O espírita consciente é chamado a verificar antes de divulgar, ponderar
antes de opinar e compreender antes de reagir. A verdade, como ensina Jesus,
liberta (João 8:32) — mas só liberta quando é usada com amor e discernimento.
3. O Crivo da Bondade: O Amor
como Medida de toda Comunicação
O segundo crivo, o da bondade, traduz o princípio
maior do Evangelho: “Fora da caridade não
há salvação”. O que não é bom, edificante ou respeitoso, não deve ser dito
nem propagado. Allan Kardec, em O Evangelho segundo o Espiritismo (cap.
IX, “Bem-aventurados os brandos e
pacíficos”), ressalta que o homem de bem se reconhece pela benevolência
para com todos, e pela indulgência para com as imperfeições alheias.
Assim, o crivo da bondade nos convida a substituir
a crítica destrutiva pela compreensão, a maledicência pela empatia, e a fofoca
pelo silêncio útil. Toda palavra que não constrói, destrói; e, segundo os
Espíritos, “o mal que se diz, mesmo em
tom leve, retorna ao seu autor com o peso do arrependimento”.
4. O Crivo da Utilidade: A
Construção Moral da Palavra
O terceiro crivo, o da utilidade, completa o
triângulo moral proposto por Sócrates. O Espiritismo o interpreta como o valor
prático e edificante do que comunicamos. “Toda
ocupação útil é um trabalho”, ensina O Livro dos Espíritos (q. 674).
Assim, também a palavra útil é um trabalho do bem, pois contribui para o
progresso moral e espiritual dos que a ouvem ou leem.
Quantas vezes, porém, nossas palavras são
desperdiçadas em futilidades, sarcasmos e queixas? A Doutrina Espírita ensina
que o verdadeiro progresso não está apenas na inteligência, mas na capacidade
de orientar essa inteligência para o bem comum. Falar o necessário, no momento
oportuno, com respeito e clareza, é uma forma de caridade silenciosa e
profunda.
5. A Maledicência e o
Esquecimento do Espírito
No fundo, a lição dos três crivos é um convite ao
domínio moral da linguagem. Irmão X, ao narrar o episódio socrático, traduz
para o campo espírita o mesmo apelo evangélico: “Dize-me o que falas, e dir-te-ei quem és.” A maledicência é o
reflexo de um Espírito ainda preso à inferioridade moral. Na Revista
Espírita (dezembro de 1861), Kardec escreve que “a língua é o termômetro da elevação espiritual”; e acrescenta que “os Espíritos superiores jamais se ocupam de
trivialidades ou críticas pessoais”.
A prudência verbal é, pois, um sinal de maturidade
espiritual. Quando o indivíduo aprende a silenciar o supérfluo, a filtrar o que
transmite e a servir pela palavra, revela o progresso de sua consciência.
Conclusão
O ensinamento de Sócrates, reavivado por Irmão X e
confirmado pela Doutrina Espírita, permanece de admirável atualidade. Em uma
era de excessos verbais e emocionais, aplicar os três crivos — da verdade, da
bondade e da utilidade — é mais do que um exercício moral: é uma forma de
higiene espiritual.
O espírita que educa sua palavra colabora com a
regeneração do mundo, porque transforma a comunicação em instrumento de paz. E,
como ensina a Doutrina Espírita, “a transformação
íntima começa nas pequenas coisas” — e entre elas, nenhuma é mais
reveladora do que o uso que fazemos do verbo, esse sagrado dom do pensamento em
ação.
Referências
- KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC,
Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
- KARDEC,
Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.
- KARDEC,
Allan. Revista Espírita. 1858–1869.
- XAVIER,
Francisco Cândido (psicografia). Contos e Apólogos. Espírito Irmão
X (Humberto de Campos).
- JESUS,
Cristo. Evangelho segundo João, 8:32.
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