Introdução
René
Descartes (1596–1650), considerado o pai da filosofia moderna, inaugurou um
modo de pensar que transformou profundamente a ciência, a cultura e a própria
concepção do ser humano. Seu Discurso do Método (1637) foi uma tentativa
de estabelecer um caminho seguro para o conhecimento, fundado na razão e na
certeza matemática. No entanto, o sucesso desse empreendimento também trouxe
limitações: o dualismo entre mente e corpo, a fragmentação do saber e a exclusão
do espírito como dimensão essencial da realidade.
À luz da
Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, especialmente em O Livro dos
Espíritos e nas Revistas Espíritas (1858–1869), é possível
reinterpretar a herança cartesiana, compreendendo seus méritos e suas
fronteiras. O Espiritismo, sem negar o valor do método racional, amplia-o,
integrando razão, moral e espiritualidade em uma visão unificadora do ser e do
cosmos.
1. O legado cartesiano: razão, método e dualismo
Descartes
viveu em plena Revolução Científica, período em que o pensamento europeu rompeu
com o dogmatismo escolástico. Inspirado por Copérnico, Kepler e Galileu, buscou
um método que garantisse certeza e objetividade ao conhecimento. Sua fórmula — “dividir as dificuldades em tantas partes
quantas forem possíveis” — deu origem ao pensamento analítico que, até
hoje, fundamenta a ciência.
Essa
atitude representou um avanço civilizatório. A confiança na razão libertou o
homem da tutela do sobrenatural e do absolutismo teológico. Contudo, o preço
dessa libertação foi a cisão entre o “pensante” (res cogitans) e o
“extenso” (res extensa). O homem tornou-se, ao mesmo tempo, senhor e
estrangeiro da natureza; o corpo, uma máquina; o mundo, um mecanismo. A
espiritualidade foi relegada ao campo da crença, e o universo reduziu-se àquilo
que podia ser medido.
Segundo
Fritjof Capra (O Ponto de Mutação, 1986), o pensamento cartesiano
inaugurou o paradigma mecanicista que ainda domina a cultura científica
ocidental. Mas, como já antecipava Kardec, “a
ciência e a religião são duas alavancas do entendimento humano; uma revela as
leis do mundo material e a outra as do mundo moral” (A Gênese, cap.
I, item 16). Quando se separam, empobrecem-se mutuamente.
2. O Espírito como princípio unificador do saber
A
Doutrina Espírita oferece uma resposta conciliadora ao dualismo cartesiano. Ao
afirmar que “o espírito é o princípio
inteligente do universo” (O Livro dos Espíritos, q. 23), Kardec
propõe um terceiro elemento que supera a oposição entre mente e matéria. O
Espírito é o agente que pensa, sente e atua por meio do corpo, sem se confundir
com ele. Essa compreensão estabelece uma ponte entre ciência e filosofia, entre
razão e fé.
Descartes
identificou a glândula pineal como o ponto de contato entre alma e corpo — uma
intuição que, curiosamente, encontra eco na explicação espírita sobre o papel
do perispírito como intermediário entre ambos. A diferença está em que Kardec
não trata o vínculo como algo físico, mas fluídico e dinâmico, governado por
leis espirituais. A interação mente-corpo, portanto, não é uma anomalia, mas
uma expressão natural da unidade essencial do ser.
O
Espiritismo mostra que o método analítico cartesiano é útil para o estudo da
matéria, mas insuficiente para compreender o Espírito. A realidade espiritual
exige um método moral e experimental, que Kardec define como o “método espírita”: observar os efeitos,
remontar às causas e comparar resultados, sem dogmatismo nem misticismo. Assim,
o Espiritismo amplia o ideal cartesiano de clareza e evidência, estendendo-o ao
campo moral e transcendental.
3. Do mecanicismo à visão espiritual da natureza
O
pensamento de Descartes impregnou a medicina, a psicologia e a economia,
levando à visão do corpo humano como máquina e da vida como fenômeno puramente
biológico. Essa concepção, ainda presente na tecnociência contemporânea,
contribuiu para grandes avanços, mas também para o distanciamento ético e
afetivo nas relações humanas.
A
Doutrina Espírita, ao contrário, entende que a vida é expressão do Espírito em
evolução. O corpo é instrumento, não essência. “O Espírito preexiste e sobrevive ao corpo” (O Livro dos
Espíritos, q. 68). Essa visão devolve à ciência o sentido de
responsabilidade moral: conhecer não é dominar, mas compreender e servir.
Emmanuel, em O Consolador (q. 109), lembra que “a ciência é a revelação das leis divinas no campo da matéria”.
Assim, o verdadeiro progresso científico é aquele que se harmoniza com o
progresso moral.
Em tempos
de crise climática, desequilíbrio mental e solidão tecnológica, o paradigma
espiritualista mostra-se cada vez mais necessário. O novo saber deve unir o
rigor cartesiano à sensibilidade cristã — isto é, à ética do amor. A ciência
que ignora a alma corre o risco de produzir máquinas perfeitas e homens vazios.
4. A superação do dualismo pela consciência
espiritual
O
dualismo cartesiano pode ser visto, hoje, como uma etapa necessária na pedagogia
divina do pensamento humano. Separar foi o primeiro passo para compreender;
unir, porém, é o desafio atual. O Espiritismo propõe essa síntese: razão e
sentimento, ciência e fé, corpo e alma, humanidade e natureza são expressões
diversas da mesma realidade espiritual.
Como
afirma Kardec na Revista Espírita (agosto de 1862): “O progresso do Espírito se opera pela depuração das ideias e pela
ampliação do entendimento”. Isso significa que a ciência, ao evoluir, deve
integrar aquilo que antes excluiu — o Espírito, a moral, o sentido. O “penso, logo existo” de Descartes
encontra, assim, sua continuidade natural na máxima espírita: “Amo, logo evoluo”.
Conclusão
René
Descartes foi um marco no despertar da razão, mas seu método, tomado
isoladamente, conduziu ao império do materialismo. A Doutrina Espírita resgata
o valor da razão sem despojá-la da alma, reintegrando o ser humano em sua
totalidade. A ciência precisa da fé raciocinada; a fé, da lucidez científica.
A
verdadeira filosofia, como ensina Kardec, é aquela que ilumina o homem para que
compreenda sua origem, sua destinação e sua responsabilidade diante da vida.
Nesse ponto, o Espiritismo realiza o sonho cartesiano de uma “ciência universal”, mas agora
alicerçada não apenas no cálculo, e sim na consciência.
Referências
- CAPRA, Fritjof. O Ponto
de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1986.
- DESCARTES, René. O
Discurso do Método. Ediouro, 1986.
- KARDEC, Allan. O Livro
dos Espíritos. Paris, 1857.
- KARDEC, Allan. A Gênese.
Paris, 1868.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita (1858–1869). Paris.
- XAVIER, Francisco Cândido
(por Emmanuel). O Consolador. FEB, 1940.
- REALE, G.; ANTISERI, D. História
da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990.
- ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Relatório
Mundial sobre Ciência e Ética, 2023.
- GUIMARÃES, Carlos A. F. A
Filosofia da Razão. Artigo.
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