terça-feira, 14 de outubro de 2025

RENÉ DESCARTES E O DESPERTAR DA RAZÃO MODERNA
UM ENSAIO À LUZ DA FILOSOFIA ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

Introdução

René Descartes (1596–1650), considerado o pai da filosofia moderna, inaugurou um modo de pensar que transformou profundamente a ciência, a cultura e a própria concepção do ser humano. Seu Discurso do Método (1637) foi uma tentativa de estabelecer um caminho seguro para o conhecimento, fundado na razão e na certeza matemática. No entanto, o sucesso desse empreendimento também trouxe limitações: o dualismo entre mente e corpo, a fragmentação do saber e a exclusão do espírito como dimensão essencial da realidade.

À luz da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, especialmente em O Livro dos Espíritos e nas Revistas Espíritas (1858–1869), é possível reinterpretar a herança cartesiana, compreendendo seus méritos e suas fronteiras. O Espiritismo, sem negar o valor do método racional, amplia-o, integrando razão, moral e espiritualidade em uma visão unificadora do ser e do cosmos.

1. O legado cartesiano: razão, método e dualismo

Descartes viveu em plena Revolução Científica, período em que o pensamento europeu rompeu com o dogmatismo escolástico. Inspirado por Copérnico, Kepler e Galileu, buscou um método que garantisse certeza e objetividade ao conhecimento. Sua fórmula — “dividir as dificuldades em tantas partes quantas forem possíveis” — deu origem ao pensamento analítico que, até hoje, fundamenta a ciência.

Essa atitude representou um avanço civilizatório. A confiança na razão libertou o homem da tutela do sobrenatural e do absolutismo teológico. Contudo, o preço dessa libertação foi a cisão entre o “pensante” (res cogitans) e o “extenso” (res extensa). O homem tornou-se, ao mesmo tempo, senhor e estrangeiro da natureza; o corpo, uma máquina; o mundo, um mecanismo. A espiritualidade foi relegada ao campo da crença, e o universo reduziu-se àquilo que podia ser medido.

Segundo Fritjof Capra (O Ponto de Mutação, 1986), o pensamento cartesiano inaugurou o paradigma mecanicista que ainda domina a cultura científica ocidental. Mas, como já antecipava Kardec, “a ciência e a religião são duas alavancas do entendimento humano; uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral” (A Gênese, cap. I, item 16). Quando se separam, empobrecem-se mutuamente.

2. O Espírito como princípio unificador do saber

A Doutrina Espírita oferece uma resposta conciliadora ao dualismo cartesiano. Ao afirmar que “o espírito é o princípio inteligente do universo” (O Livro dos Espíritos, q. 23), Kardec propõe um terceiro elemento que supera a oposição entre mente e matéria. O Espírito é o agente que pensa, sente e atua por meio do corpo, sem se confundir com ele. Essa compreensão estabelece uma ponte entre ciência e filosofia, entre razão e fé.

Descartes identificou a glândula pineal como o ponto de contato entre alma e corpo — uma intuição que, curiosamente, encontra eco na explicação espírita sobre o papel do perispírito como intermediário entre ambos. A diferença está em que Kardec não trata o vínculo como algo físico, mas fluídico e dinâmico, governado por leis espirituais. A interação mente-corpo, portanto, não é uma anomalia, mas uma expressão natural da unidade essencial do ser.

O Espiritismo mostra que o método analítico cartesiano é útil para o estudo da matéria, mas insuficiente para compreender o Espírito. A realidade espiritual exige um método moral e experimental, que Kardec define como o “método espírita”: observar os efeitos, remontar às causas e comparar resultados, sem dogmatismo nem misticismo. Assim, o Espiritismo amplia o ideal cartesiano de clareza e evidência, estendendo-o ao campo moral e transcendental.

3. Do mecanicismo à visão espiritual da natureza

O pensamento de Descartes impregnou a medicina, a psicologia e a economia, levando à visão do corpo humano como máquina e da vida como fenômeno puramente biológico. Essa concepção, ainda presente na tecnociência contemporânea, contribuiu para grandes avanços, mas também para o distanciamento ético e afetivo nas relações humanas.

A Doutrina Espírita, ao contrário, entende que a vida é expressão do Espírito em evolução. O corpo é instrumento, não essência. “O Espírito preexiste e sobrevive ao corpo” (O Livro dos Espíritos, q. 68). Essa visão devolve à ciência o sentido de responsabilidade moral: conhecer não é dominar, mas compreender e servir. Emmanuel, em O Consolador (q. 109), lembra que “a ciência é a revelação das leis divinas no campo da matéria”. Assim, o verdadeiro progresso científico é aquele que se harmoniza com o progresso moral.

Em tempos de crise climática, desequilíbrio mental e solidão tecnológica, o paradigma espiritualista mostra-se cada vez mais necessário. O novo saber deve unir o rigor cartesiano à sensibilidade cristã — isto é, à ética do amor. A ciência que ignora a alma corre o risco de produzir máquinas perfeitas e homens vazios.

4. A superação do dualismo pela consciência espiritual

O dualismo cartesiano pode ser visto, hoje, como uma etapa necessária na pedagogia divina do pensamento humano. Separar foi o primeiro passo para compreender; unir, porém, é o desafio atual. O Espiritismo propõe essa síntese: razão e sentimento, ciência e fé, corpo e alma, humanidade e natureza são expressões diversas da mesma realidade espiritual.

Como afirma Kardec na Revista Espírita (agosto de 1862): “O progresso do Espírito se opera pela depuração das ideias e pela ampliação do entendimento”. Isso significa que a ciência, ao evoluir, deve integrar aquilo que antes excluiu — o Espírito, a moral, o sentido. O “penso, logo existo” de Descartes encontra, assim, sua continuidade natural na máxima espírita: “Amo, logo evoluo”.

Conclusão

René Descartes foi um marco no despertar da razão, mas seu método, tomado isoladamente, conduziu ao império do materialismo. A Doutrina Espírita resgata o valor da razão sem despojá-la da alma, reintegrando o ser humano em sua totalidade. A ciência precisa da fé raciocinada; a fé, da lucidez científica.

A verdadeira filosofia, como ensina Kardec, é aquela que ilumina o homem para que compreenda sua origem, sua destinação e sua responsabilidade diante da vida. Nesse ponto, o Espiritismo realiza o sonho cartesiano de uma “ciência universal”, mas agora alicerçada não apenas no cálculo, e sim na consciência.

Referências

  • CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1986.
  • DESCARTES, René. O Discurso do Método. Ediouro, 1986.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Paris, 1857.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. Paris, 1868.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858–1869). Paris.
  • XAVIER, Francisco Cândido (por Emmanuel). O Consolador. FEB, 1940.
  • REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990.
  • ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Relatório Mundial sobre Ciência e Ética, 2023.
  • GUIMARÃES, Carlos A. F. A Filosofia da Razão. Artigo.

 

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