As palavras de Jesus registradas nos Evangelhos de
Mateus (10:34-36) e Lucas (12:49-53) sempre causaram estranhamento à primeira
vista. Ditas por aquele que é símbolo do amor e da paz, as frases — “Não vim trazer paz, mas a espada” e “Penseis vós que vim trazer paz? Não, mas
divisão” — parecem contradizer a doçura e a mansidão ensinadas pelo Mestre.
No entanto, uma leitura à luz da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec,
especialmente no capítulo XXIII de O Evangelho segundo o Espiritismo,
revela a profundidade moral e transformadora dessas declarações.
A Espada como Símbolo da Luta
Interior
A “espada” de que fala Jesus não é um instrumento
de guerra, mas um símbolo do conflito necessário para a superação das imperfeições
humanas. O espírito, em sua caminhada evolutiva, precisa travar batalhas
constantes contra o egoísmo, o orgulho, a vaidade e o apego às ilusões do mundo
material. Essa luta íntima não é simples: exige vigilância, esforço contínuo e,
muitas vezes, renúncias dolorosas.
No item 9 do capítulo XXIII, Kardec explica que
Jesus usou a expressão “espada” como figura de linguagem para representar as
dificuldades que acompanham a transformação moral. Ao adotar novos valores e
seguir o chamado do bem, o ser humano desafia estruturas cristalizadas — tanto
em si mesmo quanto ao seu redor.
O Fogo que Purifica e Desperta
Na narrativa de Lucas (12:49-53), Jesus declara: “Eu vim trazer fogo à Terra, e que quero eu,
senão que ele se acenda?” O fogo, símbolo arquetípico de purificação,
representa aqui o poder renovador da verdade. Ele consome o que é velho, impuro
e ilusório, abrindo caminho para o novo. É o fogo que desperta as consciências
e incendeia os corações adormecidos para a realidade espiritual.
Mas esse despertar é doloroso. Não raro, provoca
reações intensas: incompreensões, resistências, rupturas. A luz que ilumina o
espírito também revela sombras, e nem todos estão dispostos a enfrentá-las.
A Divisão: Consequência do
Despertar
A “divisão”
mencionada por Jesus não é desejo de desunião, mas sim a consequência
inevitável da presença da verdade num mundo ainda marcado pela imperfeição. Ao
se depararem com os ensinamentos elevados do Cristo, os espíritos reagem de
maneiras distintas, de acordo com seu grau de maturidade espiritual. Uns os
acolhem com humildade e esforço; outros os rejeitam por orgulho ou apego aos
interesses materiais.
Essa divergência, muitas vezes, manifesta-se no
próprio seio familiar. A adoção sincera de princípios superiores pode gerar
incompreensões entre entes queridos que ainda não estão prontos para o mesmo
caminho. Conforme explica Allan Kardec no item 12 do mesmo capítulo, “a luta se estabelece entre o passado e o
futuro, entre as ideias retrógradas e as ideias progressistas”. E essa
luta, embora incômoda, é necessária ao progresso.
O Espírito e a Missão da Verdade
O ser essencial, o espírito imortal, é chamado por
Jesus à fidelidade à verdade — mesmo quando isso o afasta de comodidades e
laços puramente materiais. Como mostra o item 13 do capítulo XXIII, essa
fidelidade não é abandono do amor, mas reorientação da afeição, colocando Deus
e a justiça divina acima dos interesses transitórios da Terra.
A missão do espírito, portanto, é vencer as
resistências internas e externas que o impedem de avançar. A espada que fere é
a mesma que liberta. O fogo que consome também ilumina. A divisão que dói
prepara a união futura, mais sólida e verdadeira, baseada no amor que nasce da
verdade.
A Luta como Caminho da Paz
A paz verdadeira não é ausência de conflitos, mas a
conquista interior que se estabelece após a vitória sobre si mesmo. Como
afirmado no item 18, “a paz não pode
estabelecer-se senão quando a justiça reinar”. Assim, a passagem de Jesus
pela Terra não prometeu tranquilidade imediata, mas inaugurou um novo ciclo de
conscientização moral, que exige esforço, coragem e perseverança.
Esse é o desafio do espírito em sua ascensão:
atravessar os desertos da dor e da dúvida, empunhando a espada do discernimento
e mantendo acesa a chama da fé raciocinada. E, embora essa caminhada seja
árdua, é também libertadora — pois conduz à verdadeira paz, aquela que começa no
íntimo do ser e resplandece no mundo.
Conclusão
As palavras de Jesus, interpretadas pelo Espiritismo com profundidade e coerência, revelam que o progresso espiritual é um processo dinâmico, que envolve rupturas, escolhas difíceis e, acima de tudo, transformação interior. A “espada” e o “fogo” do Evangelho são chamados à coragem moral e à fidelidade à verdade. Cabe a cada espírito atender a esse chamado com lucidez, disposição e amor, reconhecendo que, embora o caminho seja estreito, ele conduz à libertação da alma e à construção de um mundo mais justo e fraterno.
Referências:
Mateus 10:34-36.Lucas 12:49-53.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo XXIII, itens 7 a 18.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
KARDEC, Allan. A Gênese.
KARDEC, Allan. Revista Espírita.
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