Ao longo de sua trajetória como codificador do
Espiritismo, Allan Kardec manteve vigilância constante quanto à fidelidade dos
princípios da Doutrina. Uma de suas preocupações mais contundentes dizia
respeito à pureza de intenção dos trabalhadores espíritas, especialmente
no que se refere à especulação — não apenas a material, mas sobretudo a moral.
Em seu discurso proferido nas reuniões gerais dos
espíritas de Lyon e Bordeaux, em 1862, Kardec abordou com clareza um problema
que já se insinuava nos primeiros grupos organizados: o uso da Doutrina para
fins pessoais, ainda que disfarçados sob o verniz da boa intenção. Essa
advertência, infelizmente, continua atual.
A Especulação Material: Venda da
Verdade?
A especulação material, conforme explicou Kardec,
referia-se à cobrança para o acesso às reuniões espíritas ou à busca de lucro
através das atividades doutrinárias. Essa prática contraria diretamente a
orientação do ensino gratuito da verdade, pois transforma o que é
sagrado em comércio e inverte o princípio de desinteresse que deve
nortear a divulgação do Espiritismo. Felizmente, tal comportamento tornou-se
mais raro na atualidade.
A Especulação Moral: O Orgulho
Disfarçado de Virtude
Mais sutil — e por isso mais perigosa — é a especulação
moral. Trata-se do uso do Espiritismo como instrumento de promoção pessoal,
da busca de aplauso, de posições de destaque, de autoridade dentro do
movimento, ainda que não haja qualquer retribuição financeira envolvida. Kardec
descreveu essa atitude como a satisfação do orgulho e do amor-próprio,
daqueles que usam o Espiritismo como pedestal para se projetarem.
Em Viagem Espírita em 1862, ele denuncia com
firmeza tal conduta, chamando atenção para o risco de nos apegarmos a cargos e
posições como se fôssemos insubstituíveis. Quando imaginamos que determinada
tarefa só pode ser realizada por nós, deixamos de compreender a essência da
Doutrina, que vê o ser humano como um espírito em transição, e não como
um corpo que detém títulos ou poderes definitivos.
A Questão 895 de O Livro dos
Espíritos: Um Critério de Autoconhecimento
Kardec aprofunda essa análise ao tratar do interesse
pessoal como indício de imperfeição, na questão 895 de O Livro dos
Espíritos. Ele afirma que, embora alguém possa apresentar virtudes
exteriores, basta tocar na questão do interesse — seja material, seja emocional
ou simbólico — para se revelar o verdadeiro fundo moral do indivíduo.
É por isso que o verdadeiro desinteresse — o
agir sem pretensões de recompensa, aplauso ou controle — é tão raro. O apego às
coisas materiais ou à própria imagem pública revela ainda nossa ligação com a
inferioridade espiritual. Já a humildade autêntica e o anonimato
ativo são marcas de um espírito que enxerga a vida de um ponto de vista
mais elevado.
Desinteresse Material e
Desinteresse Moral: Duas Faces da Mesma Virtude
Kardec diferencia dois tipos de desinteresse, ambos
indispensáveis na prática espírita:
- Desinteresse material: é a ausência de desejo por
qualquer vantagem financeira ou material. Não se vende, não se cobra, não
se lucra com o sagrado.
- Desinteresse moral: é a renúncia às vaidades,
ao orgulho, à pretensão de protagonismo. É a capacidade de servir sem
esperar reconhecimento, sem se considerar insubstituível ou superior.
Na Revista Espírita de março de 1864, ele é
claro ao dizer que o desinteresse material nada vale se não vier acompanhado
pelo desinteresse moral. Um sem o outro revela incoerência.
Uma Reflexão para os
Trabalhadores Espíritas
Diante desse ensinamento, somos convidados a fazer um exame de consciência sincero:
- Qual é o móvel real das nossas ações na seara espírita?
- O que nos move?
- A vontade sincera de servir, ou a necessidade de
reconhecimento?
- Estamos realmente desinteressados, ou apenas nos
afastamos do dinheiro, mas seguimos alimentando a vaidade?
Tais perguntas devem ser respondidas no silêncio da
alma, à luz da nossa consciência. É ela quem revelará o que há de autêntico em
nosso serviço e o que ainda precisa ser purificado.
Conclusão: O Espiritismo como
Escola da Alma
O Espiritismo não é campo para vaidades. É uma
escola moral, onde aprendemos a servir, a amar e a nos desapegar das ilusões do
mundo. Toda tarefa espírita — da mais simples à mais visível — é oportunidade
de crescimento do espírito imortal, e não de construção de prestígio
para a personalidade transitória.
Que possamos seguir o exemplo de Allan Kardec, que viveu
o desinteresse em todas as suas formas, e compreender que a verdadeira
grandeza não está nos cargos, nas palavras ou nas aparências, mas na
humildade silenciosa de quem serve por amor.
REFERÊNCIAS:
- KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Questão 895.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita, março de 1864.
- XAVIER, Francisco Cândido. A Coragem da Fé. Espíritos
Diversos.
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