Recebemos a mensagem de um leitor interessado nos
fundamentos do Espiritismo. Cientista social por formação, ele levanta questões
recorrentes, mas legítimas, que merecem atenção criteriosa. A seguir,
analisamos cada ponto com base no método de Allan Kardec, que sempre
priorizou o bom senso, o estudo comparado, o raciocínio lógico e o diálogo
entre ciência, filosofia e moral.
1.
Espiritismo e Bíblia: Contradição ou Coerência?
A primeira observação trata da citação frequente da
Bíblia por parte de espíritas, mesmo quando se afirma que o Espiritismo não se
baseia nela como revelação absoluta.
Comentário: De fato, o Espiritismo não se
apoia na Bíblia como um livro sagrado no sentido tradicional. Como ensina
Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo, os ensinamentos de Jesus
são analisados sob a luz da razão e da moral universal, sendo valorizados por
seu conteúdo ético, e não por dogmas de fé ou revelações infalíveis.
Entretanto, isso não impede que textos bíblicos
sejam utilizados como ponto de apoio ou ilustração moral, desde que
submetidos à análise crítica e à concordância com os princípios espíritas. O
que se observa em alguns meios espíritas é uma tendência sincrética e, por
vezes, conservadora — herança cultural do catolicismo — que não reflete
necessariamente o núcleo da Doutrina codificada por Kardec.
Allan Kardec, ao interpretar os Evangelhos, separa
o essencial do acessório, resgata o espírito da letra e propõe uma leitura
ética e racional de Jesus. A Doutrina Espírita, portanto, não segue a Bíblia
como regra de fé, mas pode dialogar com ela onde houver afinidade de princípios.
2. E a
Ciência? Onde estão as provas?
O segundo ponto questiona a validade científica do
Espiritismo, perguntando onde estão as evidências materiais, visíveis, dos
fenômenos que sustenta.
Comentário: É uma inquietação legítima,
especialmente num mundo onde a ciência empírica domina o pensamento. Ocorre que
o Espiritismo nasceu, justamente, da observação de fatos: as mesas girantes, os
fenômenos inteligentes, as comunicações mediúnicas. O próprio Kardec, em O
Livro dos Médiuns, deixa claro que a base do Espiritismo não é a fé cega,
mas a verificação racional de efeitos observáveis.
No século XIX, nomes como Sir William Crookes,
Cromwell Varley e Alfred Russel Wallace investigaram fenômenos
mediúnicos com rigor científico, chegando a resultados que consideraram
autênticos. Crookes, por exemplo, declarou a existência de uma “força
inteligente” como causa dos efeitos que observou.
Na Física contemporânea, pensadores como Heisenberg
e Murray Gell-Mann também sugeriram a existência de “princípios organizadores” fora do campo visível da matéria, o que
abre espaço para reflexões que dialogam com ideias espíritas, como a existência
do fluido universal ou dos princípios inteligentes da natureza.
Embora o Espiritismo não seja uma ciência
tradicional, ele possui uma metodologia própria de investigação do
espiritual, aberta ao diálogo com outras ciências. A comprovação absoluta
talvez ainda não exista nos moldes clássicos, mas a experiência continuada,
o testemunho coerente e a convergência de dados mediúnicos apontam
fortemente para a realidade espiritual.
3. E se
tudo veio da mente de Kardec?
Aqui o leitor levanta a hipótese de que Allan Kardec
pode ter sido influenciado por sua própria mente ao compilar os ensinamentos
espíritas. Será saudável seguir um “homem
comum”?
Comentário: Essa dúvida é natural e salutar.
Kardec nunca pediu fé cega. Pelo contrário, recomendava que tudo fosse
submetido ao crivo da razão. Como educador, formado sob o método de Pestalozzi,
ele estava habituado à lógica, à pedagogia e à neutralidade crítica.
A principal defesa contra a personalização da
Doutrina está no controle universal do ensino dos Espíritos: Kardec não
publicou nada com base em uma única fonte mediúnica. Antes de incluir qualquer
ensinamento na codificação, ele comparava centenas de comunicações, obtidas em
diversos países, por médiuns desconhecidos entre si. Quando a resposta era
uniforme e coerente, ele a considerava digna de confiança.
Além disso, Kardec sempre distinguia o que era opinião
pessoal daquilo que era ensino dos Espíritos. Ele se colocava como
organizador, não como criador. Isso é facilmente verificável nas suas obras,
que são didaticamente estruturadas e marcadas por imparcialidade.
Seguir os princípios espíritas, portanto, não é
idolatrar um homem, mas aderir a uma doutrina que se constrói sobre
observação, análise e consenso espiritual, mantida viva pelo estudo contínuo.
4. Por
que Espíritos se manifestam se vão reencarnar?
O leitor questiona: se os Espíritos precisam
reencarnar para evoluir, qual o sentido de ficarem “baixando” em centros espíritas ou de umbanda?
Comentário: Primeiramente, segundo Kardec, nenhum
Espírito é obrigado a reencarnar. A reencarnação é um meio natural de
progresso, mas não é uma punição compulsória. Espíritos mais adiantados, por
exemplo, podem atuar no mundo espiritual ou como mentores sem necessidade
imediata de um novo corpo físico.
As manifestações mediúnicas se explicam por
afinidade, necessidade de aprendizado, desejo de auxiliar ou mesmo por
estagnação espiritual. Muitos Espíritos ainda se encontram presos a paixões,
vícios ou laços afetivos, e encontram no intercâmbio mediúnico uma forma de
comunicação, esclarecimento ou até mesmo obsessão.
Além disso, a comunicação espiritual não anula a
trajetória evolutiva, nem interfere no ciclo reencarnatório. Um Espírito
pode se manifestar e, algum tempo depois, retornar à carne, conforme sua
necessidade e merecimento.
A mediunidade, bem orientada, é instrumento de
aprendizado para encarnados e desencarnados. Não há contradição: há
continuidade e lógica no processo.
Conclusão: A Atualidade do Método
Espírita
As perguntas apresentadas pelo leitor revelam uma
postura crítica, mas honesta — e Kardec recomendaria exatamente isso: duvidar
com inteligência, investigar com método, aceitar com lucidez.
A Doutrina Espírita não é perfeita nem acabada. Ela
é progressiva, aberta à ciência, ética no conteúdo e racional na forma.
Atualizá-la, sim, mas sem traí-la. A base permanece: Deus, imortalidade da
alma, reencarnação, comunicabilidade dos Espíritos e pluralidade dos mundos
habitados.
Como dizia Kardec: “Mais vale rejeitar dez verdades do que aceitar uma única mentira.”
O Espiritismo não impõe nada: convida à reflexão, ao estudo e à
transformação pessoal consciente.
Que a busca pela verdade nos inspire — com lógica, amor e humildade.
Referências:KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, A Gênese, O Evangelho segundo o Espiritismo.
CROOKES, William. Researches in the Phenomena of Spiritualism.
HEISENBERG, Werner. Physics and Philosophy.
GELL-MANN, Murray. The Quark and the Jaguar.
Revista Espírita (1858-1869), Allan Kardec.
VARLEY, Cromwell Fleetwood. Relatos à London Dialectical Society (1869).
IMBASSAHY, Carlos de B.: texto base deste artigo, Dúvidas sobre o Espiritismo.
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