Ao nos debruçarmos com seriedade sobre os
fundamentos da Doutrina Espírita, ditada pelos Espíritos Superiores e
codificada por Allan Kardec, é inevitável a constatação de que seu conteúdo é
uno e coeso. Ainda assim, há, infelizmente, uma tendência crescente à
segmentação conceitual da doutrina, seja pela apropriação de rótulos
inadequados, seja por tentativas de fusão com práticas religiosas alheias à
Codificação. Uma dessas distorções mais comuns é o uso do termo Kardecismo.
O
Espiritismo é uma Doutrina, não um “ismo” de homem algum
A palavra Espiritismo foi cunhada por Kardec
para designar a nova doutrina, distinguindo-a de termos vagos como espiritualismo.
Como explica o Codificador na introdução de O Livro dos Espíritos, o
neologismo teve por objetivo delimitar com precisão o campo de estudo e prática
da doutrina, centrado nas relações entre os mundos material e espiritual e nas
consequências morais daí advindas. Usar, portanto, o termo Kardecismo
não só é desnecessário como também equivocado, pois desloca o centro da
doutrina dos Espíritos para a figura humana do Codificador.
Herculano Pires, em O Que é o Espiritismo,
observa com precisão:
“A
Doutrina que nos legou não é o kardecismo, mas o Espiritismo, ou seja, a
Doutrina dos Espíritos.”
Essa doutrina, portanto, não é obra exclusiva de um
homem, por mais lúcido que tenha sido seu papel. É fruto da ação coordenada do
mundo espiritual, da qual Allan Kardec foi instrumento fiel, jamais autor pessoal.
Uma só
Doutrina, três aspectos indissociáveis
Outro erro comum é a tentativa de dividir o Espiritismo
em compartimentos estanques: científico, filosófico ou religioso. Essa
separação artificial compromete o entendimento da Doutrina como um corpo
doutrinário harmônico e interdependente. Allan Kardec é claro ao afirmar que o
Espiritismo é uma ciência de observação dos fatos espirituais, com
consequências filosóficas e morais — e, portanto, com implicações de ordem
espiritual no sentido mais elevado do termo: a vivência da moral cristã.
Essa concepção está presente em toda a obra dos Espíritos,
ou seja, na Doutrina Espírita, mas se manifesta de maneira particularmente
clara em O
Evangelho segundo o Espiritismo, quando o Codificador afirma:
“O
Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador Prometido: conhecimento das
coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na
Terra.”
Assim, utilizar termos como Espiritismo
científico ou Espiritismo laico cria a falsa impressão de que seria
possível excluir os outros pilares da doutrina — como se existissem
espiritismos diferentes ou opções doutrinárias paralelas dentro do mesmo
edifício conceitual.
A
confusão com outras práticas: o caso da Umbanda e da “mesa branca”
Alguns termos, como Espiritismo de mesa branca
ou Espiritismo de Umbanda, geram ainda mais confusão, especialmente
entre os que se iniciam no estudo da doutrina. Tais expressões contribuem para
confundir o Espiritismo com a Umbanda ou com outras práticas mediúnicas
populares no Brasil que, embora respeitáveis, não fazem parte da Doutrina
Espírita.
É fundamental ressaltar três pontos:
- Espiritismo e Umbanda não são a mesma coisa.
- A Umbanda não é uma vertente do Espiritismo.
- O Espiritismo surgiu na França, no século XIX; a Umbanda surgiu no
Brasil, no século XX.
Além disso, a ideia de mesa branca está
ligada a um imaginário ritualístico que não condiz com a simplicidade
preconizada pelos Espíritos. Nos Centros Espíritas sérios, não há vestimentas
especiais, imagens, rituais exteriores nem paramentos. A espiritualidade se
manifesta no recolhimento íntimo, na disciplina moral, na oração sincera e no
estudo constante.
Por que
não Kardecismo?
Voltemos à questão central: por que o termo Kardecismo
não é adequado?
Primeiramente, porque Kardec jamais o utilizou. Em
suas obras, ele sempre se referiu à Doutrina dos Espíritos, Doutrina
Espírita ou, simplesmente, Espiritismo. Em segundo lugar, porque
essa terminologia reforça a falsa ideia de que o Espiritismo é criação pessoal
de Kardec, e não revelação coletiva dos Espíritos Superiores. Por fim, porque o
uso de Kardecismo leva a uma deturpação doutrinária e histórica,
obscurecendo o verdadeiro caráter do Espiritismo como revelação progressiva e
universal.
Como o próprio Kardec escreveu em O Que é o
Espiritismo:
“O
erro de todos está na crença comum de que a origem do Espiritismo é uma só;
tudo se origina da opinião individual de um homem. (...) Buscam a ideia na
Terra, quando ela está no espaço.”
O dever
do espírita: preservar e esclarecer
É dever de todo espírita sincero preservar o
conteúdo e o conceito da Doutrina Espírita, conforme foi codificada. Isso
inclui o cuidado com a linguagem que usamos para divulgá-la. As palavras moldam
ideias; ideias moldam atitudes. Quando nos referimos ao Espiritismo como Kardecismo,
mesmo com boas intenções, abrimos espaço para incompreensões e distorções, além
de darmos margem à visão reducionista de que se trata de mais uma seita com seu
“fundador”.
Evitar essa confusão é tarefa de todos nós que
estudamos, vivemos e divulgamos a Doutrina Espírita. A clareza conceitual é
parte do compromisso com a Verdade que o Espiritismo representa. Ao invés de Kardecismo,
digamos com firmeza e serenidade: Doutrina Espírita — ou, simplesmente, Espiritismo.
Sejamos, pois, fiéis à essência da Doutrina dos Espíritos, esclarecendo com amor e firmeza que o Espiritismo é uma só coisa, e é fruto dos ensinamentos dos Espíritos Superiores — seres que, por sua elevação moral e intelectual, atuam como mensageiros da verdade e guias do progresso espiritual da humanidade.
Bibliografia:
- ALLAN KARDEC. O Livro dos Espíritos,
Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita. Trad. J. Herculano Pires. São
Paulo: LAKE, 2010.
- ALLAN KARDEC. O Que é o Espiritismo.
Trad. Wallace Leal V. Rodrigues. São Paulo: LAKE, 2011.
- HERCULANO PIRES. Notícia sobre o Livro O
Que é o Espiritismo.
- ANDRES GUSTAVO ARRUDA. Espiritismo ou
Kardecismo? Texto-base.
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