No vocabulário popular, a palavra “incorporação” costuma ser usada para
descrever o fenômeno mediúnico em que um Espírito se manifesta por meio do
corpo de uma pessoa. A imagem mais comum é a de um Espírito “entrando” em um corpo alheio e, por
meio dele, falando ou agindo — como exemplificado no famoso filme Ghost,
em que a médium, interpretada por Whoopi Goldberg, serve de canal visível e
tangível para os desencarnados.
Entretanto, quando observamos o termo à luz da
Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec, percebemos que essa concepção
não corresponde ao que realmente se dá nos fenômenos mediúnicos. A palavra
“incorporação” — do latim incorporatio, que significa “ato de entrar em um corpo” ou “encarnação” — não foi utilizada por Kardec nos textos originais em
francês. Sua introdução ocorreu posteriormente, através de traduções que
buscaram aproximar o conteúdo à linguagem acessível ao público, substituindo,
por exemplo, o termo “médium falante”
por “médium de incorporação”.
A
terminologia original de Kardec
Kardec, em suas obras fundamentais, especialmente O
Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo e Instruções
Práticas sobre as Manifestações Espíritas, usou termos como médium
falante, médium auditivo, médium mecânico, intuitivo, semimecânico,
entre outros. Neles, descreve como os Espíritos agem sobre o perispírito do
médium para provocar o fenômeno mediúnico.
A manifestação não se dá por uma substituição ou
invasão do corpo do médium, mas por uma ação fluídica sobre sua alma e, por
consequência, sobre seus órgãos. O Espírito comunicante não entra no corpo do
médium como alguém que adentra uma casa. Ele influencia, domina, imprime sua
vontade sobre o perispírito do médium — o envoltório semimaterial do Espírito —
que, por sua vez, transmite os impulsos ao corpo físico.
A união
do Espírito ao corpo
Esse entendimento se torna ainda mais claro quando
analisamos o processo de encarnação, conforme descrito por Kardec em A
Gênese. Desde o momento da concepção, um Espírito é atraído por uma força
irresistível ao corpo em formação. A ligação se dá através do perispírito, que
se une molécula a molécula ao organismo em desenvolvimento, até que, no
nascimento, a união esteja completa.
Essa união não pode ser rompida senão pela morte do
corpo. Mesmo diante de uma possessão — que Kardec define como um caso de
subjugação extrema — o Espírito encarnado permanece ligado ao seu corpo. A
questão 473 de O Livro dos Espíritos é taxativa ao afirmar que um
Espírito não pode substituir o Espírito encarnado, pois os dois estão ligados
até o final da existência corporal. Ou seja, não existe “troca de alma” ou
substituição temporária do Espírito que anima um corpo.
Mediunidade
e possessão: o papel do perispírito
Tanto na mediunidade falante quanto nos casos de
possessão espiritual, a ação do Espírito comunicante ou obsessor se dá através
do perispírito do encarnado. Na mediunidade sadia, o médium cede
voluntariamente sua faculdade ao Espírito, que atua sobre seus centros de
força, sobretudo sobre a região cerebral e o aparelho fonador. Essa ação é
fluídica, e não física.
Na possessão, a diferença é moral. Um Espírito
inferior, por meio de afinidade vibratória e pela ausência de resistência moral
do encarnado, pode exercer influência profunda sobre ele, chegando a
controlar-lhe temporariamente os atos, as palavras e os pensamentos. Ainda
assim, não se trata de ocupação corporal direta, e sim de dominação fluídica
sobre o perispírito.
Kardec nos esclarece que a mediunidade falante
funciona de maneira análoga à psicografia: o Espírito comunicante imprime seu
pensamento ao médium, utilizando-o como intérprete. E mesmo quando o médium não
tem consciência do que diz, isso não significa que ele foi "tomado"
por outro Espírito — apenas que sua participação foi passiva.
A função
do médium: intérprete e instrumento
Nas comunicações mediúnicas, o Espírito do médium
funciona como um fio condutor entre o plano espiritual e o mundo físico. A
resposta dos Espíritos à questão sobre como ocorre essa ligação é clara: “O Espírito do médium é o intérprete [...]
como é necessário um fio elétrico para transmitir uma notícia à distância”.
Em mensagem recebida por Allan Kardec, os Espíritos
Erasto e Timóteo explicam que o pensamento do Espírito comunicante é irradiado
ao médium, que o capta de maneira mais ou menos consciente, dependendo de sua
faculdade. Esse pensamento não necessita de palavras, pois no plano espiritual
o pensamento é linguagem. O médium, por estar encarnado, é mais apto a traduzir
esse pensamento aos demais encarnados.
O termo
incorporação sob nova luz
Diante de tudo isso, podemos concluir que o uso do
termo incorporação para designar a mediunidade falante ou mesmo o
fenômeno de possessão espiritual é, do ponto de vista espírita, impróprio. A
palavra é mais bem empregada para designar o processo de encarnação, ou
seja, o ato de um Espírito unir-se definitivamente a um corpo material para
vivenciar uma existência terrena.
Assim, a ideia popular de que um Espírito “entra”
no corpo de outro deve ser substituída pela compreensão mais precisa e racional
oferecida pela Doutrina Espírita: o Espírito comunicante não se incorpora,
mas atua sobre o médium, influenciando-o através do perispírito, sempre
respeitando os limites da ligação fluídica entre o Espírito encarnado e seu
corpo.
Conclusão
O Espiritismo, ao estudar os fenômenos mediúnicos com rigor e clareza, nos convida a abandonar as imagens místicas ou supersticiosas em favor de uma compreensão mais lúcida, baseada em leis naturais. Mediunidade é uma faculdade humana e natural, que permite a comunicação entre os dois mundos — o visível e o invisível —, desde que bem compreendida e praticada com responsabilidade.
Referências:Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos
Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns
Kardec, Allan. A Gênese
Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo
Kardec, Allan. Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas
Revista Espírita, Allan Kardec
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
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