A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec
entre 1857 e 1869, está firmemente alicerçada sobre as Leis Naturais e
Universais. Esses princípios, revelados pelos Espíritos Superiores e
organizados metodicamente por Kardec nas obras fundamentais — O Livro dos
Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho segundo o Espiritismo,
O Céu e o Inferno, A Gênese —, têm resistido ao tempo pela
clareza racional e moral que os sustenta. Qualquer tentativa de “atualização”
dessas bases deve, portanto, ser cuidadosamente examinada à luz do próprio
método e da filosofia que deram origem à Doutrina.
Atualização
de forma, não de essência
É natural e desejável que a linguagem e os meios de
comunicação do Espiritismo se atualizem de acordo com os tempos. O próprio
Kardec fazia isso em seu tempo, valendo-se dos estudos e debates da Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas e utilizando a Revista Espírita como
verdadeiro laboratório doutrinário. Foi nesse espaço dinâmico que ele
aperfeiçoou conceitos e ampliou entendimentos — como se observa no caso da
possessão espiritual.
Até 1863, Kardec entendia que só havia subjugação,
mas ao analisar o caso da senhorita Júlia, relatado nas edições de dezembro de
1863 e janeiro de 1864 da Revista Espírita, ele reconheceu a existência
de uma forma real de possessão, parcial, mas distinta da subjugação. O
progresso doutrinário se fez, então, naturalmente, por meio da
observação, do confronto dos fatos com os princípios e da confirmação pelos
Espíritos sérios. Este é o método espírita de evolução das ideias.
O
Espiritismo e o progresso
Em O Livro dos Médiuns, Kardec afirma com
clareza:
“A Ciência Espírita progrediu (e deverá progredir)
como todas as outras”.
Esse progresso se dá pelo estudo, pela análise dos
fatos novos e pelo amadurecimento dos conceitos — e nunca por decisões
arbitrárias, imposições humanas ou modismos ideológicos. Em A Gênese
(cap. I, item 55), lemos:
“O Espiritismo, marchando com o progresso, não será
nunca extravasado, porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está em
erro sobre um ponto, ele se reformulará sobre este ponto; se uma nova verdade
se revela, ele a aceita.”
Portanto, o Espiritismo está aberto ao progresso,
mas condicionado à evidência, à lógica e à participação dos
Espíritos.
Uma
revisão a cada 25 anos: a proposta de Kardec
A ideia de revisões periódicas da “constituição
orgânica” do Espiritismo não é nova. Em Obras Póstumas, na segunda parte
intitulada Constituição do Espiritismo, Kardec propõe revisões a cada 25
anos. Ele compreendia que as necessidades humanas se transformam com o tempo e
que seria imprudente manter uma estrutura inflexível, incapaz de acompanhar o
progresso legítimo.
“As necessidades variam com as épocas e com o
desenvolvimento das ideias. [...] Acompanhar ou não o movimento propulsivo é
uma questão de vida ou de morte.”
Mas Kardec também alerta para os perigos das
mudanças frequentes ou precipitadas. Por isso, sugere a criação de um comitê
central permanente, composto por pessoas idôneas e experientes, cuja função
seria estudar, analisar, sistematizar e organizar as contribuições e
experiências da coletividade espírita ao longo do tempo.
Esse comitê não teria autoridade individual ou
poder centralizador, mas funcionaria de modo coletivo e deliberativo,
com seus atos sendo sempre submetidos à avaliação dos congressos periódicos,
onde os participantes — representantes de diferentes partes do mundo — poderiam
votar, opinar e propor alterações com base na vivência e no estudo.
O
silêncio das revisões: uma lacuna a preencher
Até hoje, passados mais de 150 anos desde a
proposta kardeciana, nenhuma revisão oficial conforme esse modelo foi
realizada. Isso não desqualifica o Espiritismo, mas revela uma lacuna
importante a ser enfrentada por seus adeptos.
O verdadeiro desafio não está em fazer ou não a
revisão da Doutrina, mas em como criar as condições necessárias para que
essa revisão se dê de forma segura, fiel aos princípios originais e acompanhada
pela espiritualidade superior — assim como aconteceu no século XIX.
Sem a participação ativa dos Espíritos, novos
esclarecimentos não passam de opiniões pessoais. Uma revisão doutrinária séria
precisaria reunir:
- Estudo profundo da codificação original e da Revista Espírita
(1858-1869);
- Observações rigorosas dos novos fatos e fenômenos espirituais;
- Participação de médiuns confiáveis e moralizados;
- Confirmação pelos Espíritos superiores, em comunicações sérias e
convergentes;
- Organização ética, democrática e sem personalismos.
Talvez seja necessário, como o autor do artigo
propõe, um novo Livro dos Espíritos — ou pelo menos um apêndice ou
extensão — com mil novas questões contemporâneas, formuladas pelos encarnados e
respondidas pelos Espíritos, como Kardec fez, com método, coerência e
serenidade.
Preparação
e responsabilidade coletiva
Para tanto, a formação de um comitê central,
conforme delineado por Kardec em Obras Póstumas e na Revista Espírita
de dezembro de 1868, parece essencial. Esse grupo não substituiria a
codificação, mas atuaria como facilitador e catalisador do diálogo entre as
esferas espiritual e material, organizando um trabalho coletivo, aberto,
progressivo e transparente.
Os congressos periódicos poderiam funcionar como
momentos-chave para consolidação de ideias, revisão dos princípios orgânicos da
estrutura do movimento espírita, mas sempre com respeito absoluto aos
princípios fundamentais definidos pela codificação.
Conclusão:
o Espiritismo é dos Espíritos
A Doutrina Espírita não pertence a homens ou
instituições humanas. Kardec foi o seu codificador, e não criador. Assim, qualquer
progresso dentro da Doutrina precisa, necessariamente, envolver os dois planos
da existência: os encarnados, com suas perguntas, e os desencarnados
superiores, com suas respostas.
Atualizar o Espiritismo, portanto, não é
reinterpretá-lo segundo modismos ou interesses pessoais ou institucionais,
mas sim reencontrar seu espírito vivo, ativo e esclarecedor, do modo como ele
se apresentou no século XIX: como luz progressiva da razão, da fé raciocinada e
do amor universal.
A proposta está lançada. O desafio é grande. Mas o futuro do Espiritismo está nas mãos — e nas consciências — daqueles que o amam com fidelidade, razão e coragem.
Referências:Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos
Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns
Kardec, Allan. A Gênese
Kardec, Allan. Obras Póstumas
Kardec, Allan. Revista Espírita (1858-1869)
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
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