“Importa que cada coisa venha a seu tempo. A
verdade é como a luz; o homem precisa habituar-se a ela pouco a pouco, do
contrário fica deslumbrado.” — Allan Kardec
A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec,
é, por excelência, progressiva e fiel à busca criteriosa da verdade. Um exemplo
marcante dessa metodologia é o tratamento da questão da possessão espiritual
ao longo dos anos da Codificação.
Inicialmente negada de forma categórica, a ideia de
possessão foi reformulada gradativamente por Kardec, à medida que novas
observações e fatos medianímicos eram estudados com profundidade. Este artigo
tem por objetivo percorrer esse caminho reflexivo, tal como fez o Codificador,
analisando o fenômeno da possessão sob diferentes prismas, tal como registrado
em O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho
segundo o Espiritismo, A Gênese e as páginas da Revista Espírita.
A Primeira Definição: Obsessão,
Subjugação e não Possessão
Em 1857, com a publicação de O Livro dos
Espíritos, Kardec formula as perguntas 473 e 474, que tratam diretamente da
possibilidade de um Espírito estranho tomar o corpo de um encarnado:
Pergunta 473: Pode um Espírito tomar temporariamente
o invólucro corporal de uma pessoa viva, isto é, introduzir-se num corpo
animado e obrar em lugar do outro que se acha encarnado nesse corpo?
A resposta é clara: não há coabitação. O
Espírito encarnado permanece ligado ao seu corpo e nenhuma entidade pode
substituí-lo. Ao desenvolver a questão, os Espíritos acrescentam que, embora
não haja possessão como entendida vulgarmente, pode haver subjugação, em
que a vontade do encarnado fica, de certo modo, paralisada.
Esse é o conceito inicial de verdadeira
possessão: um estado de domínio psíquico profundo, mas sem a entrada de
outro Espírito no corpo físico. Kardec, prudentemente, conclui que o termo "possesso" só se aplica a essa
total dependência moral e psíquica, mas não à coabitação espiritual.
A Evolução do Conceito: Os Fatos que
Mudaram a Compreensão
A partir de 1858, a Revista Espírita,
dirigida por Kardec, começa a trazer relatos mais complexos, como os Estudos
sobre os Possessos de Morzine. São dezenas de casos documentados entre 1862
e 1868, em que Espíritos pareciam agir diretamente sobre os corpos dos
encarnados — alguns inclusive manifestando-se como se tivessem tomado posse
física dos mesmos.
Em especial, o caso da Sra. Júlia, estudado
entre 1863 e 1864, é revelador. Ela se debatia em crises violentas, falava
consigo mesma como se fosse dois seres distintos e chegou a atentar contra a
própria vida tentando "expulsar"
a entidade que sentia em seu corpo. Outro caso, o do Sr. Charles, mostra
a substituição temporária do Espírito da médium por um Espírito desencarnado
que se comunicava diretamente usando seu corpo.
Esses relatos forçaram Kardec a uma nova análise.
Em 1863, escreve:
“Voltamos à nossa asserção absoluta, porque agora
nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição,
posto que parcial, de um Espírito errante a um encarnado.”
Não se tratava de uma mudança incoerente, mas de
uma evolução do conhecimento, degrau por degrau, sempre com base em
observação, comparação e repetição, como ele mesmo ensinava no O Livro dos
Médiuns.
Uma nova Definição de Possessão:
Temporária, Parcial e sem Ruptura do Laço Vital
Em A Gênese (1868), Kardec oferece sua
definição mais completa e amadurecida:
“Na possessão, em vez de agir exteriormente, o
Espírito atuante se substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado,
tomando-lhe o corpo por domicílio, sem que este, no entanto, seja abandonado
por seu dono, pois isso só se pode dar pela morte.”
O Espírito encarnado não sai completamente
do corpo. Ele permanece ligado, mas é sobrepujado, dominado ao ponto de
sua ação consciente ficar suspensa ou inibida. A possessão é, portanto, temporária
e intermitente, nunca total nem definitiva.
Essa conclusão dialoga com o ensino de que:
- O perispírito do Espírito obsessor penetra o do encarnado e o
magnetiza;
- A vontade do encarnado pode ser anulada momentaneamente, sem que
sua consciência desapareça por completo;
- Em casos graves, há necessidade de intervenção
de terceiros para restaurar o equilíbrio.
A Possessão Segundo o Evangelho e
a Defesa Espiritual
Em O Evangelho segundo o Espiritismo, a
possessão é classificada como o grau máximo da obsessão, quando o
Espírito obsessor se vale da ligação fluídica para subjugar completamente o
encarnado. O texto afirma:
“Para isentá-lo da obsessão, é preciso fortificar a
alma (...); o auxílio de terceiros se faz indispensável, quando a obsessão
degenera em subjugação e em possessão.”
A defesa contra tais influências não se dá por
fórmulas mágicas ou rituais, mas pelo fortalecimento moral, pela
construção de uma couraça fluídica positiva, pela prece, pela vigilância e pelo
esforço sincero de melhoria interior. O Espírito mal não possui acesso se não
houver brechas ou sintonia vibratória.
Conclusão: Evolução Conceitual e
Fidelidade ao Método Espírita
Allan Kardec nunca se contradisse: ele evoluiu.
A ideia inicial de que não existia possessão era compatível com os
conhecimentos de 1857. Mas, com os novos fatos analisados entre 1858 e 1868, o
conceito foi reformulado à luz da experiência, como é próprio da ciência e da
filosofia espíritas.
A Codificação Espírita é um corpo orgânico e
indivisível. Seus temas — inclusive o da possessão — devem ser estudados em
conjunto, respeitando a lógica interna da obra e o método progressivo adotado
por Kardec.
Conforme esclareceu o Codificador, a verdade deve
ser revelada aos poucos, como a luz que fere os olhos despreparados. Kardec
demonstrou não apenas fé raciocinada, mas também uma humildade científica rara
— postura que continua a nos inspirar.
Sigamos, pois, seu exemplo. A lição orienta, mas o exemplo arrasta.
Referências BibliográficasAllan Kardec em:
O Livro dos Espíritos, perg. 473 e 474
Revista Espírita, 1858, p. 278
O Livro dos Médiuns, item 240
Revista Espírita, 1862–1868
O Evangelho Segundo o Espiritismo
A Gênese, cap. XIV
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