“É preciso tudo fazer passar pelo crivo da razão e
da lógica.”
— O
Livro dos Médiuns, cap. XX, item 230
A recomendação acima, dada por Erasto e registrada
por Allan Kardec, sintetiza um dos pilares da abordagem espírita: submeter todo
ensinamento ao exame da razão. Este princípio não se limita a uma diretriz
ética ou a um conselho genérico — trata-se, na verdade, de uma diretriz
metodológica fundamental na construção do conhecimento espírita.
Kardec não codificou o Espiritismo com base em
revelações místicas, mas sim a partir da observação rigorosa dos fenômenos
espirituais, da análise comparada das mensagens mediúnicas e, sobretudo, da
fidelidade à lógica e ao bom senso. Assim, o uso da razão é mais do que um
apoio: é a base sobre a qual se assenta toda a estrutura doutrinária espírita.
A
Centralidade da Razão no Pensamento Espírita
O Espiritismo se define como uma doutrina de fé
raciocinada (cf. O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIX,
item 7). Isso significa que nenhuma ideia deve ser aceita cegamente, mesmo
quando emanada por um Espírito considerado “superior”.
Kardec foi categórico:
“Antes
de aceitar uma comunicação como proveniente de um Espírito superior, é
necessário saber se ela resiste ao controle severo da razão.”
— Revista Espírita, dezembro de 1861
Ao abordar os conceitos de razão — ratio e logos
— o pensamento espírita afasta-se da fé cega, do êxtase místico e das paixões
descontroladas, aproximando-se de uma visão que valoriza o discernimento e a
clareza mental. Esses perigos — a ilusão, o fanatismo, o misticismo desregrado
— foram denunciados por Kardec como obstáculos ao verdadeiro progresso da
Doutrina.
A Lógica como
Suporte da Estrutura Espírita
Ao analisar a operação racional segundo quatro
princípios clássicos da lógica — identidade, não contradição, terceiro excluído
e razão suficiente — reconhece-se que esses fundamentos estão presentes, de
forma implícita ou explícita, na construção do saber espírita:
- Identidade: é o que permite reconhecer um Espírito,
distinguir o real do ilusório e identificar com clareza uma manifestação
mediúnica.
- Não contradição: sustenta o princípio do
controle universal do ensino dos Espíritos, pelo qual Kardec descartava
comunicações contraditórias ou ilógicas.
- Terceiro excluído: está presente em
afirmações doutrinárias categóricas, como a imortalidade da alma — ou ela
é, ou não é.
- Razão suficiente: fundamenta a Lei de Causa
e Efeito, segundo a qual nada acontece sem uma causa, e cabe ao Espírito
investigar com lucidez os porquês da vida.
Esses princípios não são meros conceitos
filosóficos, mas instrumentos vivos no exercício de um Espiritismo sério,
responsável e coerente com sua proposta educativa e libertadora.
A Crítica
como Exigência da Doutrina
Inspirando-se também em pensadores contemporâneos
como Marilena Chauí, a reflexão aqui apresentada valoriza a crítica como
instrumento de compreensão e libertação. Essa postura crítica é inerente ao
Espiritismo, que não receia o questionamento — ao contrário, o estimula.
Kardec foi, acima de tudo, um crítico das
comunicações mediúnicas. Ele avaliava o conteúdo das mensagens, comparava
diferentes fontes, buscava coerência, rejeitava ideias conflitantes e
desmontava posições ideológicas incompatíveis com os princípios da Doutrina.
“O
Espiritismo quer ser aceito pela razão; por isso se dirige à inteligência, e
não à imaginação.”
— O
Livro dos Médiuns, cap. XXVII, item 303
A crítica, nesse contexto, não destrói a fé; ao
contrário, fortalece-a quando está baseada na razão e na observação.
Fenômenos
Espirituais também Devem Passar pelo Crivo da Razão
Mesmo nos casos de fenômenos inesperados, sutis ou
aparentemente inexplicáveis, a Doutrina Espírita mantém o princípio da
racionalidade. Kardec jamais admitiu que a fé se fundamentasse apenas em
maravilhas ou efeitos extraordinários:
“A
fé raciocinada se apoia nos fatos e na lógica; não deixa nenhuma obscuridade.”
— O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIX, item 7
Assim, mesmo diante do imponderável, o Espiritismo
convida à prudência, à análise comparativa das manifestações, à verificação de
suas causas e à coerência doutrinária, evitando os desvios da superstição, do
dogmatismo ou da idolatria mediúnica.
Uma
Contribuição que Dialoga com a Doutrina Espírita
A presente reflexão, inspirada no ensaio “O
Crivo da Razão”, de Albino A. C. de Novaes, publicado no blog Espiritismo
Comentado, integra-se plenamente aos fundamentos da Doutrina Espírita
codificada por Allan Kardec. Ainda que elaborada a partir de elementos da
filosofia ocidental, ela dialoga harmoniosamente com o pensamento espírita, que
examina, filtra e se enriquece com o que há de mais sério e elevado na tradição
filosófica e científica.
O Espiritismo propõe:
- Uma fé lúcida, que não teme a razão.
- Um método baseado na observação, no bom senso e na análise crítica.
- Um estudo contínuo, livre, aberto ao diálogo com todas as áreas do
conhecimento.
- A construção de um saber espiritual rigoroso, coerente e acessível
à inteligência humana.
Concluir que a razão é elemento estrutural da
Doutrina Espírita é não apenas justo, mas necessário. É por meio dela que o
Espiritismo se distingue dos sistemas místicos tradicionais e propõe-se como
uma filosofia espiritual que não prescinde da ciência nem da lógica. Ao aplicar
essa chave de leitura, reafirma-se que o Espiritismo é, acima de tudo, um
convite ao conhecimento liberto e à fé esclarecida.
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