O
livro de Eclesiastes, em sua busca por sabedoria e sentido, apresenta uma frase
impactante: “Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a
canção do tolo” (Eclesiastes 7:5). A “canção dos tolos” é uma metáfora para
a superficialidade, o discurso vazio e a busca pelo prazer imediato em
detrimento da reflexão e da verdade.
No
movimento espírita contemporâneo, esse alerta pode ser útil. Não se trata de
condenar ou negar os avanços, mas de analisar racionalmente os rumos do
Espiritismo organizado, sempre à luz da Codificação Espírita de Allan Kardec
(1857–1869) e da Revista Espírita (1858–1869). O próprio Codificador
ensinava que a crítica construtiva, quando fundamentada, é um dever para que a
Doutrina não se desvirtue (Revista Espírita, março de 1858).
Assim,
a comparação bíblica serve como convite a distinguir entre discursos que
edificam e aqueles que apenas agradam os ouvidos, mas que pouco contribuem para
o progresso espiritual.
A “Canção dos Tolos” no Movimento Espírita
1. O risco da superficialidade doutrinária
Muitos centros espíritas desenvolvem atividades
assistenciais relevantes, mas deixam em segundo plano o estudo sistemático da
Codificação. Sem essa base, abre-se espaço para práticas alheias ao
Espiritismo, fenômeno que Kardec já previa: “Onde quer que se recuse a
verdade, o erro logo encontra guarida” (Revista Espírita, novembro
de 1861).
2. O perigo da lisonja e da busca de
prestígio
Em O Livro dos Médiuns (cap. 24, item 267),
os Espíritos alertam contra comunicações que se limitam a agradar e seduzir. Analogamente,
há no movimento quem busque aplausos ou posições de destaque, utilizando a
“política de agradar” em vez do esforço por respeitar os princípios
fundamentais da Doutrina Espírita.
3. A falsa ideia de unidade pela omissão da
crítica
O ideal de união não pode significar silêncio
diante de desvios. Kardec lembrava que “a censura feita com justiça nunca é
ofensiva; mais vale ferir com a verdade do que lisonjear com a mentira” (Revista
Espírita, julho de 1860). Reprimir o debate saudável é, muitas vezes,
alimentar a estagnação.
4. O desafio do contexto social contemporâneo
Vivemos um mundo em crise: desigualdades sociais,
degradação ambiental, violência e perda de referenciais éticos. O Espiritismo
tem instrumentos para orientar essa transformação, mas precisa evitar que suas
instituições fiquem restritas a práticas formais ou a discursos que não
enfrentam as questões morais e sociais de fundo.
Exemplos da Revista Espírita: Kardec e a Repreensão
Necessária
Para
compreender como lidar com tais desafios, basta observar como Kardec se
posicionava diante de desvios em seu tempo:
- Charlatanismo e
comércio da fé: Na Revista Espírita (dezembro de
1861), Kardec advertiu contra aqueles que exploravam a curiosidade pública
com mesas girantes e espetáculos pagos, distorcendo o caráter sério da
Doutrina. Sua postura foi firme: o Espiritismo deveria ser um campo de
estudo moral e filosófico, não de diversão ou comércio.
- Exaltação de
médiuns e personalismos: Em Revista Espírita (maio de 1860),
Kardec relatou casos em que médiuns se deixaram levar pelo orgulho,
crendo-se indispensáveis. Advertiu que os Espíritos superiores retiram seu
concurso quando percebem a vaidade, restando apenas comunicações
inferiores. Aqui, vemos o paralelo com o presente, quando o prestígio
pessoal suplanta a dedicação ao estudo e ao serviço.
- Práticas estranhas
ao Espiritismo: Em Revista Espírita (junho de 1859),
Kardec registrou mensagens apócrifas atribuídas a grandes Espíritos que,
em verdade, eram mistificações de entidades inferiores. O Codificador
insistia na necessidade de confrontar qualquer ensino com a razão e com os
princípios fundamentais da Doutrina Espírita.
- Unidade sem
servilismo:
Em Revista Espírita (dezembro de 1868), ao refletir sobre a união
dos espíritas, Kardec alertou que a verdadeira unificação só pode se dar
em torno da adesão consciente aos princípios básicos do Espiritismo, e
nunca por submissão cega a lideranças humanas. Esse ponto é extremamente
atual, pois mostra que a crítica construtiva é parte da unidade real.
A Necessidade de Transformação Íntima e Coletiva
A
solução não está em desqualificar instituições ou pessoas, mas em revisitar
o método espírita: estudo, análise crítica e vivência moral. Em Obras
Póstumas, Kardec afirma que o Espiritismo deve ser constantemente
examinado, para que não se cristalize como uma religião formal, mas permaneça
como ciência e filosofia espiritual em progresso.
Isso
implica:
- Fortalecer o estudo
metódico da Codificação;
- Desenvolver a formação
ética dos trabalhadores espíritas;
- Evitar tanto o
dogmatismo quanto o relativismo;
- Reconhecer que a caridade
material é importante, mas não substitui o ensino moral e espiritual.
O Chamado à Repreensão do Sábio
No
simbolismo de Eclesiastes, a repreensão do sábio não é destrutiva, mas
corretiva e libertadora. Para o movimento espírita, isso significa recuperar o
espírito crítico construtivo de Kardec, que nunca se furtou a apontar erros,
mas sempre em nome da verdade e do progresso coletivo.
A Revista
Espírita registra diversos momentos em que Kardec contestou abusos,
equívocos ou exageros no próprio meio espírita. Sua postura demonstra que o
verdadeiro respeito à Doutrina se dá pelo compromisso com os princípios
fundamentais da Doutrina Espírita, e não pelo silêncio cúmplice diante da
“canção dos tolos”.
Conclusão
O
Espiritismo, por sua essência, não necessita de adereços para ser consolador e
transformador. Porém, para que mantenha sua pureza e eficácia, exige
trabalhadores conscientes, dispostos a unir fraternidade com estudo, caridade
com reflexão, e ação social com princípios doutrinários sólidos.
A
“canção dos tolos” pode seduzir pelo aplauso fácil ou pelo discurso agradável,
mas não constrói. Já a “repreensão do sábio”, ainda que incômoda, conduz ao
amadurecimento. Que os espíritas do presente saibam escolher a voz da razão, da
crítica construtiva e da fidelidade aos princípios fundamentais da Doutrina
Espírita, evitando assim que a Doutrina se perca em ruídos passageiros,
quando sua missão é ser luz orientadora para a humanidade.
Referências
- A Bíblia de
Jerusalém. Eclesiastes 7:5.
- Kardec, Allan. O
Livro dos Espíritos. 1857.
- Kardec, Allan. O
Livro dos Médiuns. 1861.
- Kardec, Allan. Revista Espírita (1858–1869).
- Kardec, Allan. Obras Póstumas. 1890.
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