sábado, 23 de agosto de 2025

A “CANÇÃO DOS TOLOS” E O MOVIMENTO ESPÍRITA ATUAL:
UMA REFLEXÃO À LUZ DA DOUTRINA ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

Introdução

O livro de Eclesiastes, em sua busca por sabedoria e sentido, apresenta uma frase impactante: “Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do tolo” (Eclesiastes 7:5). A “canção dos tolos” é uma metáfora para a superficialidade, o discurso vazio e a busca pelo prazer imediato em detrimento da reflexão e da verdade.

No movimento espírita contemporâneo, esse alerta pode ser útil. Não se trata de condenar ou negar os avanços, mas de analisar racionalmente os rumos do Espiritismo organizado, sempre à luz da Codificação Espírita de Allan Kardec (1857–1869) e da Revista Espírita (1858–1869). O próprio Codificador ensinava que a crítica construtiva, quando fundamentada, é um dever para que a Doutrina não se desvirtue (Revista Espírita, março de 1858).

Assim, a comparação bíblica serve como convite a distinguir entre discursos que edificam e aqueles que apenas agradam os ouvidos, mas que pouco contribuem para o progresso espiritual.

A “Canção dos Tolos” no Movimento Espírita

1. O risco da superficialidade doutrinária

Muitos centros espíritas desenvolvem atividades assistenciais relevantes, mas deixam em segundo plano o estudo sistemático da Codificação. Sem essa base, abre-se espaço para práticas alheias ao Espiritismo, fenômeno que Kardec já previa: “Onde quer que se recuse a verdade, o erro logo encontra guarida” (Revista Espírita, novembro de 1861).

2. O perigo da lisonja e da busca de prestígio

Em O Livro dos Médiuns (cap. 24, item 267), os Espíritos alertam contra comunicações que se limitam a agradar e seduzir. Analogamente, há no movimento quem busque aplausos ou posições de destaque, utilizando a “política de agradar” em vez do esforço por respeitar os princípios fundamentais da Doutrina Espírita.

3. A falsa ideia de unidade pela omissão da crítica

O ideal de união não pode significar silêncio diante de desvios. Kardec lembrava que “a censura feita com justiça nunca é ofensiva; mais vale ferir com a verdade do que lisonjear com a mentira” (Revista Espírita, julho de 1860). Reprimir o debate saudável é, muitas vezes, alimentar a estagnação.

4. O desafio do contexto social contemporâneo

Vivemos um mundo em crise: desigualdades sociais, degradação ambiental, violência e perda de referenciais éticos. O Espiritismo tem instrumentos para orientar essa transformação, mas precisa evitar que suas instituições fiquem restritas a práticas formais ou a discursos que não enfrentam as questões morais e sociais de fundo.

Exemplos da Revista Espírita: Kardec e a Repreensão Necessária

Para compreender como lidar com tais desafios, basta observar como Kardec se posicionava diante de desvios em seu tempo:

  • Charlatanismo e comércio da fé: Na Revista Espírita (dezembro de 1861), Kardec advertiu contra aqueles que exploravam a curiosidade pública com mesas girantes e espetáculos pagos, distorcendo o caráter sério da Doutrina. Sua postura foi firme: o Espiritismo deveria ser um campo de estudo moral e filosófico, não de diversão ou comércio.
  • Exaltação de médiuns e personalismos: Em Revista Espírita (maio de 1860), Kardec relatou casos em que médiuns se deixaram levar pelo orgulho, crendo-se indispensáveis. Advertiu que os Espíritos superiores retiram seu concurso quando percebem a vaidade, restando apenas comunicações inferiores. Aqui, vemos o paralelo com o presente, quando o prestígio pessoal suplanta a dedicação ao estudo e ao serviço.
  • Práticas estranhas ao Espiritismo: Em Revista Espírita (junho de 1859), Kardec registrou mensagens apócrifas atribuídas a grandes Espíritos que, em verdade, eram mistificações de entidades inferiores. O Codificador insistia na necessidade de confrontar qualquer ensino com a razão e com os princípios fundamentais da Doutrina Espírita.
  • Unidade sem servilismo: Em Revista Espírita (dezembro de 1868), ao refletir sobre a união dos espíritas, Kardec alertou que a verdadeira unificação só pode se dar em torno da adesão consciente aos princípios básicos do Espiritismo, e nunca por submissão cega a lideranças humanas. Esse ponto é extremamente atual, pois mostra que a crítica construtiva é parte da unidade real.

A Necessidade de Transformação Íntima e Coletiva

A solução não está em desqualificar instituições ou pessoas, mas em revisitar o método espírita: estudo, análise crítica e vivência moral. Em Obras Póstumas, Kardec afirma que o Espiritismo deve ser constantemente examinado, para que não se cristalize como uma religião formal, mas permaneça como ciência e filosofia espiritual em progresso.

Isso implica:

  • Fortalecer o estudo metódico da Codificação;
  • Desenvolver a formação ética dos trabalhadores espíritas;
  • Evitar tanto o dogmatismo quanto o relativismo;
  • Reconhecer que a caridade material é importante, mas não substitui o ensino moral e espiritual.

O Chamado à Repreensão do Sábio

No simbolismo de Eclesiastes, a repreensão do sábio não é destrutiva, mas corretiva e libertadora. Para o movimento espírita, isso significa recuperar o espírito crítico construtivo de Kardec, que nunca se furtou a apontar erros, mas sempre em nome da verdade e do progresso coletivo.

A Revista Espírita registra diversos momentos em que Kardec contestou abusos, equívocos ou exageros no próprio meio espírita. Sua postura demonstra que o verdadeiro respeito à Doutrina se dá pelo compromisso com os princípios fundamentais da Doutrina Espírita, e não pelo silêncio cúmplice diante da “canção dos tolos”.

Conclusão

O Espiritismo, por sua essência, não necessita de adereços para ser consolador e transformador. Porém, para que mantenha sua pureza e eficácia, exige trabalhadores conscientes, dispostos a unir fraternidade com estudo, caridade com reflexão, e ação social com princípios doutrinários sólidos.

A “canção dos tolos” pode seduzir pelo aplauso fácil ou pelo discurso agradável, mas não constrói. Já a “repreensão do sábio”, ainda que incômoda, conduz ao amadurecimento. Que os espíritas do presente saibam escolher a voz da razão, da crítica construtiva e da fidelidade aos princípios fundamentais da Doutrina Espírita, evitando assim que a Doutrina se perca em ruídos passageiros, quando sua missão é ser luz orientadora para a humanidade.

Referências

  • A Bíblia de Jerusalém. Eclesiastes 7:5.
  • Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
  • Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
  • Kardec, Allan. Revista Espírita (1858–1869).
  • Kardec, Allan. Obras Póstumas. 1890.

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