“Exilada do verdadeiro lar do espírito, aprisionada
no corpo, perturbada pela paixão e obscurecida pelos sentidos, a alma ainda
anseia por aquele estado de conhecimento perfeito, pureza e bem-aventurança em
que foi criada. Suas afinidades ainda estão no alto. Ela anseia por uma forma
de vida mais elevada e nobre. Ela tenta se elevar, mas seus olhos estão
obscurecidos pelos sentidos, suas asas estão manchadas de paixão e luxúria; ela
é impelida para baixo até que caia e se apegue ao que é material e sensual; e
ela ainda se debate e rasteja em meio aos objetos dos sentidos.” ~ Platão.
Esse trecho embora não seja uma citação literal
encontrada em uma única obra de Platão, é uma síntese bastante precisa e
poética de ideias presentes em vários de seus diálogos. No entanto, o conceito
central é explorado de forma mais aprofundada em duas obras principais: Fédon e
Fedro.
Introdução
O pensamento de Platão permanece como um dos
alicerces da filosofia ocidental. Ao descrever a alma como exilada de seu
verdadeiro lar, aprisionada no corpo e constantemente tensionada entre as
alturas espirituais e os arrastamentos da matéria, o filósofo grego antecipou
reflexões que ressoam profundamente com a visão espírita. A Doutrina Espírita,
codificada por Allan Kardec no século XIX, retoma e aprofunda questões semelhantes,
oferecendo uma explicação racional e moral para o destino da alma, sua luta no
corpo físico e sua ascensão espiritual.
Este artigo analisa o célebre trecho atribuído a
Platão, relacionando-o com os princípios espíritas apresentados em O Livro
dos Espíritos, em outras obras da Codificação e na Revista Espírita
(1858-1869), a fim de compreender as convergências e distinções entre o
platonismo e o Espiritismo.
A Alma
Exilada e o Corpo como Instrumento
Platão descreve a alma como exilada do “verdadeiro
lar do espírito” e aprisionada no corpo. Para ele, a vida material obscurece a
visão da alma, que recorda, de modo imperfeito, sua origem no Mundo das
Ideias.
No Espiritismo, encontramos pensamento análogo: a
alma, que é o Espírito encarnado, temporariamente habita o corpo físico como
meio de progresso e de expiação. Kardec afirma:
“A alma é um Espírito encarnado.” (O Livro dos
Espíritos, questão 134).
Assim, o corpo não é apenas uma prisão, como em
Platão, mas sobretudo um instrumento educativo, necessário para que o
Espírito desenvolva virtudes, enfrente provas e depure-se moralmente. A
encarnação não é um castigo arbitrário, mas parte de um processo pedagógico
universal.
Paixões,
Sentidos e a Luta Interior
Platão via os sentidos como obstáculos ao
verdadeiro conhecimento, por conectarem o homem a um mundo ilusório. As
paixões, nesse contexto, “mancham as asas da alma”, impedindo-a de se elevar.
O Espiritismo aprofunda esse ponto ao distinguir
entre paixões necessárias e paixões desordenadas. Kardec explica que as paixões
são “alavancas” do progresso, quando dominadas e direcionadas, mas tornam-se
destrutivas quando controlam o Espírito (O Livro dos Espíritos, questão
908).
Na Revista Espírita, encontramos diversos
relatos de Espíritos que, após a morte, sofrem justamente pela escravidão aos
sentidos e aos prazeres materiais, confirmando a descrição platônica de uma
alma “rastejando em meio aos objetos dos sentidos”. O Espiritismo, porém, aponta
que esse estado não é definitivo: pelo esforço próprio e pela lei de
reencarnação, a alma pode sempre reerguer-se.
O Anseio
pelo Estado de Perfeição
Platão apresenta a ideia da reminiscência: a
alma anseia por retornar ao estado de pureza em que foi criada. Esse anseio é
visto como uma lembrança inata do mundo superior.
Na perspectiva espírita, esse impulso não é apenas
uma lembrança, mas uma lei divina inscrita na consciência. Kardec ensina
que Deus criou os Espíritos simples e ignorantes, mas com a destinação
inevitável de chegar à perfeição (O Livro dos Espíritos, questões
114-115). O desejo de ascender reflete, portanto, uma programação espiritual
universal.
Enquanto Platão fala em um retorno ao estado
original, o Espiritismo ensina um progresso contínuo: o Espírito não
volta a uma condição anterior, mas eleva-se a estados cada vez mais sublimes de
pureza e sabedoria, alcançando um destino superior que ainda não viveu em sua
totalidade.
Convergências
e Diferenças
A semelhança entre a filosofia platônica e a
doutrina espírita é notável em três aspectos:
- A dualidade entre alma e corpo.
- O conflito entre razão/espiritualidade e paixões/sentidos.
- O anseio da alma por um estado superior.
No entanto, o Espiritismo introduz distinções
importantes:
- A encarnação não é apenas exílio, mas aprendizado.
- O progresso é infinito e contínuo, não apenas reminiscência.
- A libertação não se dá apenas pela filosofia, mas pelo esforço
moral, pelo amor e pela caridade, que elevam o Espírito acima da matéria.
Conclusão
O trecho atribuído a Platão revela uma intuição
profunda sobre a condição da alma humana, que encontra eco e expansão na
Doutrina Espírita. Se para o filósofo grego a existência terrena é um exílio,
para o Espiritismo ela é, sobretudo, uma escola.
Ambos convergem na ideia de que a alma não pertence
em essência ao mundo material e que sua verdadeira realização está no
reencontro com a verdade, a pureza e a luz. Mas enquanto Platão via esse
retorno como recordação do Mundo das Ideias, o Espiritismo mostra que se trata
de um processo dinâmico de aperfeiçoamento pela sucessão de existências,
regido pelas leis divinas.
Assim, a mensagem central se mantém: não somos da terra, mas estamos na terra para aprender a ser melhores. A verdadeira felicidade aguarda na medida em que dominamos nossas paixões e nos voltamos para o bem e para o eterno.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 1865.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869).
- PLATÃO. Fedro. Traduções e edições diversas.
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