quarta-feira, 27 de agosto de 2025

 

A JORNADA DA ALMA EM PLATÃO E NA DOUTRINA ESPÍRITA
- A Era do Espírito -

“Exilada do verdadeiro lar do espírito, aprisionada no corpo, perturbada pela paixão e obscurecida pelos sentidos, a alma ainda anseia por aquele estado de conhecimento perfeito, pureza e bem-aventurança em que foi criada. Suas afinidades ainda estão no alto. Ela anseia por uma forma de vida mais elevada e nobre. Ela tenta se elevar, mas seus olhos estão obscurecidos pelos sentidos, suas asas estão manchadas de paixão e luxúria; ela é impelida para baixo até que caia e se apegue ao que é material e sensual; e ela ainda se debate e rasteja em meio aos objetos dos sentidos.” ~ Platão.

Esse trecho embora não seja uma citação literal encontrada em uma única obra de Platão, é uma síntese bastante precisa e poética de ideias presentes em vários de seus diálogos. No entanto, o conceito central é explorado de forma mais aprofundada em duas obras principais: Fédon e Fedro.

Introdução

O pensamento de Platão permanece como um dos alicerces da filosofia ocidental. Ao descrever a alma como exilada de seu verdadeiro lar, aprisionada no corpo e constantemente tensionada entre as alturas espirituais e os arrastamentos da matéria, o filósofo grego antecipou reflexões que ressoam profundamente com a visão espírita. A Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec no século XIX, retoma e aprofunda questões semelhantes, oferecendo uma explicação racional e moral para o destino da alma, sua luta no corpo físico e sua ascensão espiritual.

Este artigo analisa o célebre trecho atribuído a Platão, relacionando-o com os princípios espíritas apresentados em O Livro dos Espíritos, em outras obras da Codificação e na Revista Espírita (1858-1869), a fim de compreender as convergências e distinções entre o platonismo e o Espiritismo.

A Alma Exilada e o Corpo como Instrumento

Platão descreve a alma como exilada do “verdadeiro lar do espírito” e aprisionada no corpo. Para ele, a vida material obscurece a visão da alma, que recorda, de modo imperfeito, sua origem no Mundo das Ideias.

No Espiritismo, encontramos pensamento análogo: a alma, que é o Espírito encarnado, temporariamente habita o corpo físico como meio de progresso e de expiação. Kardec afirma:

“A alma é um Espírito encarnado.” (O Livro dos Espíritos, questão 134).

Assim, o corpo não é apenas uma prisão, como em Platão, mas sobretudo um instrumento educativo, necessário para que o Espírito desenvolva virtudes, enfrente provas e depure-se moralmente. A encarnação não é um castigo arbitrário, mas parte de um processo pedagógico universal.

Paixões, Sentidos e a Luta Interior

Platão via os sentidos como obstáculos ao verdadeiro conhecimento, por conectarem o homem a um mundo ilusório. As paixões, nesse contexto, “mancham as asas da alma”, impedindo-a de se elevar.

O Espiritismo aprofunda esse ponto ao distinguir entre paixões necessárias e paixões desordenadas. Kardec explica que as paixões são “alavancas” do progresso, quando dominadas e direcionadas, mas tornam-se destrutivas quando controlam o Espírito (O Livro dos Espíritos, questão 908).

Na Revista Espírita, encontramos diversos relatos de Espíritos que, após a morte, sofrem justamente pela escravidão aos sentidos e aos prazeres materiais, confirmando a descrição platônica de uma alma “rastejando em meio aos objetos dos sentidos”. O Espiritismo, porém, aponta que esse estado não é definitivo: pelo esforço próprio e pela lei de reencarnação, a alma pode sempre reerguer-se.

O Anseio pelo Estado de Perfeição

Platão apresenta a ideia da reminiscência: a alma anseia por retornar ao estado de pureza em que foi criada. Esse anseio é visto como uma lembrança inata do mundo superior.

Na perspectiva espírita, esse impulso não é apenas uma lembrança, mas uma lei divina inscrita na consciência. Kardec ensina que Deus criou os Espíritos simples e ignorantes, mas com a destinação inevitável de chegar à perfeição (O Livro dos Espíritos, questões 114-115). O desejo de ascender reflete, portanto, uma programação espiritual universal.

Enquanto Platão fala em um retorno ao estado original, o Espiritismo ensina um progresso contínuo: o Espírito não volta a uma condição anterior, mas eleva-se a estados cada vez mais sublimes de pureza e sabedoria, alcançando um destino superior que ainda não viveu em sua totalidade.

Convergências e Diferenças

A semelhança entre a filosofia platônica e a doutrina espírita é notável em três aspectos:

  1. A dualidade entre alma e corpo.
  2. O conflito entre razão/espiritualidade e paixões/sentidos.
  3. O anseio da alma por um estado superior.

No entanto, o Espiritismo introduz distinções importantes:

  • A encarnação não é apenas exílio, mas aprendizado.
  • O progresso é infinito e contínuo, não apenas reminiscência.
  • A libertação não se dá apenas pela filosofia, mas pelo esforço moral, pelo amor e pela caridade, que elevam o Espírito acima da matéria.

Conclusão

O trecho atribuído a Platão revela uma intuição profunda sobre a condição da alma humana, que encontra eco e expansão na Doutrina Espírita. Se para o filósofo grego a existência terrena é um exílio, para o Espiritismo ela é, sobretudo, uma escola.

Ambos convergem na ideia de que a alma não pertence em essência ao mundo material e que sua verdadeira realização está no reencontro com a verdade, a pureza e a luz. Mas enquanto Platão via esse retorno como recordação do Mundo das Ideias, o Espiritismo mostra que se trata de um processo dinâmico de aperfeiçoamento pela sucessão de existências, regido pelas leis divinas.

Assim, a mensagem central se mantém: não somos da terra, mas estamos na terra para aprender a ser melhores. A verdadeira felicidade aguarda na medida em que dominamos nossas paixões e nos voltamos para o bem e para o eterno.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
  • KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 1865.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858-1869).
  • PLATÃO. Fedro. Traduções e edições diversas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A GAVETA DA IDENTIDADE REFLEXÕES ESPÍRITAS SOBRE MEMÓRIA, VELHICE E RESPEITO - A Era do Espírito - Introdução A cena simples de uma idosa ...