sábado, 30 de agosto de 2025

ESPIRITISMO E SEU SENTIDO FILOSÓFICO DE RELIGIÃO:
UM ESTUDO COMPARATIVO
- A Era do Espírito -

Introdução

A reflexão sobre religião, religiosidade e religiosismo tem acompanhado a humanidade desde os primeiros sistemas de crenças até a contemporaneidade. Esses conceitos, embora próximos, possuem distinções que merecem análise cuidadosa, sobretudo quando confrontados com a natureza peculiar do Espiritismo.

Allan Kardec (1804–1869), ao codificar o Espiritismo a partir de 1857 com a publicação de O Livro dos Espíritos, inaugurou um novo campo de estudo que se apresenta como ciência de observação e filosofia de consequências morais. Kardec não deixou de lado o aspecto religioso, mas redefiniu-o em termos racionais e filosóficos, afastando-se do religiosismo e do dogmatismo que frequentemente marcam as religiões tradicionais.

Para compreendermos as diferenças, partiremos das definições de religião, religiosidade e religiosismo, para depois analisarmos em que sentido o Espiritismo se afirma como “religião” — não no aspecto institucional e ritualístico, mas no plano filosófico e moral, conforme expresso na Codificação e na Revista Espírita (1858–1869).

1. Religião

A religião pode ser entendida como um sistema cultural e social que reúne crenças, rituais, códigos morais e a relação organizada de um grupo humano com o divino ou o transcendente. É, em geral, coletiva e institucionalizada, sustentada por tradições, dogmas e práticas formais.

Exemplos: Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Budismo, Candomblé.

No Espiritismo, Allan Kardec respeitou todas as religiões, mas sempre insistiu que o Espiritismo não deveria ser confundido com uma religião no sentido comum: um corpo dogmático ou ritualístico. Ele afirma em O que é o Espiritismo que a Doutrina não possui sacerdócio, hierarquia nem culto exterior.

2. Religiosidade

A religiosidade é a vivência íntima e pessoal da fé. Diferente da religião como instituição, refere-se ao sentimento individual de ligação com o transcendente e à prática pessoal das crenças.

Exemplo: alguém pode orar todos os dias, nutrir fé em Deus e viver princípios morais de acordo com sua consciência, mesmo sem seguir rigidamente uma religião organizada.

O Espiritismo valoriza imensamente a religiosidade interior. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec destaca que “fora da caridade não há salvação”, colocando a moral evangélica acima de qualquer formalismo. Para os espíritas, a verdadeira religiosidade está no esforço íntimo de autotransformação e prática do bem.

3. Religiosismo

O religiosismo surge quando a religiosidade se transforma em excesso, fanatismo ou adesão cega a dogmas, rituais e tradições. Pode também designar uma visão filosófico-religiosa que mistura princípios humanos e valores de fé, como o “humanismo cristão”.

Caráter: frequentemente dogmático ou fanático, buscando impor verdades absolutas.

Kardec combateu o religiosismo em toda a sua obra. Na Revista Espírita (dezembro de 1868), ele ressalta que a missão do Espiritismo é “combater a incredulidade” e “trazer de volta ao sentimento religioso” aqueles que dele se afastaram, mas sem impor crenças ou transformar a Doutrina em culto externo.

4. O Espiritismo e o Sentido Filosófico de Religião

O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência de observação dos fenômenos espirituais e uma filosofia moral derivada dessas observações. Quando Kardec admitiu que o Espiritismo é uma religião, fez uma ressalva importante: não no sentido vulgar da palavra, mas no sentido filosófico, como laço moral e ligação do homem com Deus.

Em discurso publicado na Revista Espírita (dezembro de 1868), Kardec afirma:

“O Espiritismo é uma religião, se assim o quiserem, pois tem por fim conduzir a Deus; mas é uma religião sem sacerdotes, sem templos, sem rituais, e que se apoia apenas na lei divina.”

Portanto, o Espiritismo distingue-se:

  • Da religião tradicional, por não ter dogmas nem ritos;
  • Da religiosidade individual, por propor fundamentos racionais à fé e não apenas a experiência subjetiva;
  • Do religiosismo fanático, por rejeitar o dogmatismo e a imposição de crenças, favorecendo a liberdade de consciência.

Assim, o Espiritismo não se coloca em oposição às religiões, mas propõe um caminho filosófico e moral que une razão e fé, conduzindo o homem à espiritualidade autêntica, sem misticismos e sem exclusivismos.

Conclusão

A análise comparativa mostra que, enquanto a religião tradicional estrutura-se em dogmas e rituais coletivos, e a religiosidade expressa a fé pessoal, o religiosismo frequentemente leva ao fanatismo. O Espiritismo, por sua vez, apresenta-se como religião apenas em seu sentido filosófico: a busca racional de Deus e a vivência prática da moral universal.

Ao unir ciência, filosofia e moral, a Doutrina Espírita mantém distância do dogmatismo e se coloca como um caminho de esclarecimento e renovação, em sintonia com a proposta de Allan Kardec: fé raciocinada, liberdade de consciência e primazia da caridade.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1ª ed. 1857.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1ª ed. 1861.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1ª ed. 1864.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 1ª ed. 1868.
  • KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1ª ed. 1859.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858–1869). Diversos volumes.
  • PIRES, José Herculano. O Espírito e o Tempo. São Paulo: Paidéia, 1964.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

ABORRECIMENTOS E EDUCAÇÃO DA ALMA - A Era do Espírito - Introdução “Nada mais comum, nas atividades terrenas, do que o hábito enraizado da...