Introdução
A reflexão sobre religião, religiosidade
e religiosismo tem acompanhado a
humanidade desde os primeiros sistemas de crenças até a contemporaneidade.
Esses conceitos, embora próximos, possuem distinções que merecem análise
cuidadosa, sobretudo quando confrontados com a natureza peculiar do
Espiritismo.
Allan Kardec (1804–1869), ao codificar o
Espiritismo a partir de 1857 com a publicação de O Livro dos Espíritos,
inaugurou um novo campo de estudo que se apresenta como ciência de observação e
filosofia de consequências morais. Kardec não deixou de lado o aspecto religioso,
mas redefiniu-o em termos racionais e filosóficos, afastando-se do religiosismo
e do dogmatismo que frequentemente marcam as religiões tradicionais.
Para compreendermos as diferenças, partiremos das
definições de religião, religiosidade e religiosismo, para depois analisarmos
em que sentido o Espiritismo se afirma como “religião” — não no aspecto
institucional e ritualístico, mas no plano filosófico e moral, conforme
expresso na Codificação e na Revista Espírita (1858–1869).
1.
Religião
A religião
pode ser entendida como um sistema cultural e social que reúne crenças,
rituais, códigos morais e a relação organizada de um grupo humano com o divino
ou o transcendente. É, em geral, coletiva e institucionalizada, sustentada por
tradições, dogmas e práticas formais.
Exemplos: Cristianismo, Judaísmo, Islamismo,
Budismo, Candomblé.
No Espiritismo, Allan Kardec respeitou todas as
religiões, mas sempre insistiu que o Espiritismo não deveria ser confundido com
uma religião no sentido comum: um corpo dogmático ou ritualístico. Ele afirma
em O que é o Espiritismo que a Doutrina não possui sacerdócio,
hierarquia nem culto exterior.
2.
Religiosidade
A religiosidade
é a vivência íntima e pessoal da fé. Diferente da religião como instituição,
refere-se ao sentimento individual de ligação com o transcendente e à prática
pessoal das crenças.
Exemplo: alguém pode orar todos os dias, nutrir fé
em Deus e viver princípios morais de acordo com sua consciência, mesmo sem
seguir rigidamente uma religião organizada.
O Espiritismo valoriza imensamente a religiosidade
interior. Em O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec destaca que “fora
da caridade não há salvação”, colocando a moral evangélica acima de qualquer
formalismo. Para os espíritas, a verdadeira religiosidade está no esforço
íntimo de autotransformação e prática do bem.
3.
Religiosismo
O religiosismo surge quando a religiosidade se
transforma em excesso, fanatismo ou adesão cega a dogmas, rituais e tradições.
Pode também designar uma visão filosófico-religiosa que mistura princípios
humanos e valores de fé, como o “humanismo cristão”.
Caráter: frequentemente dogmático ou fanático,
buscando impor verdades absolutas.
Kardec combateu o religiosismo em toda a sua obra.
Na Revista Espírita (dezembro de 1868), ele ressalta que a missão do
Espiritismo é “combater a incredulidade” e “trazer de volta ao sentimento
religioso” aqueles que dele se afastaram, mas sem impor crenças ou transformar
a Doutrina em culto externo.
4. O
Espiritismo e o Sentido Filosófico de Religião
O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência de
observação dos fenômenos espirituais e uma filosofia moral derivada dessas
observações. Quando Kardec admitiu que o Espiritismo é uma religião, fez uma
ressalva importante: não no sentido vulgar da palavra, mas no sentido
filosófico, como laço moral e ligação do homem com Deus.
Em discurso publicado na Revista Espírita
(dezembro de 1868), Kardec afirma:
“O
Espiritismo é uma religião, se assim o quiserem, pois tem por fim conduzir a
Deus; mas é uma religião sem sacerdotes, sem templos, sem rituais, e que se
apoia apenas na lei divina.”
Portanto, o Espiritismo distingue-se:
- Da religião tradicional, por não ter dogmas nem ritos;
- Da religiosidade individual, por propor fundamentos
racionais à fé e não apenas a experiência subjetiva;
- Do religiosismo fanático, por rejeitar o dogmatismo e a
imposição de crenças, favorecendo a liberdade de consciência.
Assim, o Espiritismo não se coloca em oposição às
religiões, mas propõe um caminho filosófico e moral que une razão e fé,
conduzindo o homem à espiritualidade autêntica, sem misticismos e sem
exclusivismos.
Conclusão
A análise comparativa mostra que, enquanto a
religião tradicional estrutura-se em dogmas e rituais coletivos, e a
religiosidade expressa a fé pessoal, o religiosismo frequentemente leva ao
fanatismo. O Espiritismo, por sua vez, apresenta-se como religião apenas em seu
sentido filosófico: a busca racional de Deus e a vivência prática da
moral universal.
Ao unir ciência, filosofia e moral, a Doutrina
Espírita mantém distância do dogmatismo e se coloca como um caminho de
esclarecimento e renovação, em sintonia com a proposta de Allan Kardec: fé
raciocinada, liberdade de consciência e primazia da caridade.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1ª ed. 1857.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1ª ed. 1861.
- KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1ª ed.
1864.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1ª ed. 1868.
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1ª ed. 1859.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858–1869). Diversos
volumes.
- PIRES, José Herculano. O Espírito e o Tempo. São Paulo:
Paidéia, 1964.
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