Introdução
A palavra religião vem do latim religio,
religionis, originalmente associada ao respeito, reverência ou devoção ao
sagrado. Sua etimologia é objeto de debate entre os estudiosos: para alguns,
relaciona-se a relegere (“ler novamente”), sugerindo uma releitura
constante dos textos sagrados; para outros, a religare (“ligar
novamente”), apontando para a reconexão do ser humano com o divino.
No mundo antigo, religio designava
principalmente o respeito às leis sagradas, a observância dos ritos e o
sentimento de reverência diante do sagrado. No entanto, com o tempo, o
termo se expandiu para significar a ligação entre a humanidade e Deus, muitas
vezes assumindo contornos institucionais, dogmáticos e ritualísticos.
É nesse contexto que surge a questão: em que
sentido o Espiritismo pode ser chamado de religião? Para responder, é
necessário recorrer ao pensamento de Allan Kardec, presente em suas obras
fundamentais e na Revista Espírita, onde ele distingue claramente entre
religião dogmática e religião filosófica e moral.
1. A
palavra religião e seus sentidos históricos
A análise etimológica mostra que “religião” pode
ser compreendida de diferentes maneiras:
- Relegere (ler novamente): associa o termo ao ato de
reler e interpretar os textos sagrados com atenção, garantindo a prática
correta dos rituais.
- Religare (ligar novamente): aponta para a ideia de
reconexão entre o ser humano e o divino, fortalecendo o vínculo
espiritual.
- Respeito e reverência: no latim clássico, religio
era sobretudo respeito, devoção e consciência moral diante do sagrado.
- Serviço divino: em alguns contextos,
indicava a prática dos cultos e cerimônias em honra aos deuses.
Assim, desde sua origem, a palavra oscilou entre
uma conotação moral (respeito, reverência) e outra ritualística
(culto, observância formal).
2. A
posição de Allan Kardec
Allan Kardec abordou diversas vezes a questão de
chamar ou não o Espiritismo de religião.
- Em O que é o Espiritismo (1859), afirmou que o Espiritismo é
uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos,
e não uma religião no sentido comum.
- Em O Livro dos Espíritos (1857), ao tratar da lei divina,
destacou que a verdadeira religião está no cumprimento da lei de Deus
gravada na consciência, e não em formas exteriores (LE, questões 614 a
625).
- Em O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), deixou claro
que a essência da religião está no amor a Deus e ao próximo,
sintetizada no ensino de Jesus: “Fora da caridade não há salvação”.
- Em A Gênese (1868), reafirmou que a missão do Espiritismo é conciliar
a ciência e a religião, restituindo à fé sua base racional.
- Em Obras Póstumas (1890), foi ainda mais enfático: o
Espiritismo não vem destruir religiões, mas dar-lhes a prova objetiva
das verdades espirituais.
Na Revista Espírita, especialmente nos anos
de 1859, 1864 e 1868, Kardec insistiu que o Espiritismo não deve ser confundido
com uma religião organizada, pois não possui sacerdotes, rituais ou dogmas,
mas pode ser considerado religião no sentido filosófico de laço moral e espiritual
que liga a criatura ao Criador.
3.
Religião no sentido filosófico e moral
Ao aplicarmos a palavra religião ao Espiritismo, é
preciso compreender o termo em seu sentido filosófico e moral, e não no
vulgar. Nesse sentido, podemos destacar:
- Laço de conexão: o Espiritismo é religião
porque religa o ser humano a Deus por meio da consciência moral e do amor
ao próximo.
- Laço moral e espiritual: promove fraternidade e
caridade como princípios universais.
- Não dogmático: não impõe verdades de fé inquestionáveis;
estimula o uso da razão e da liberdade de consciência.
- Foco na moral: o essencial não são ritos, mas a vivência do
Evangelho de Jesus em sua pureza original.
Kardec resumiu essa posição em célebre passagem da Revista
Espírita (dezembro de 1868):
“Se nos perguntam se o Espiritismo é uma religião,
responderemos: sim, sem dúvida; no sentido filosófico, e não no sentido usual
da palavra. [...] O Espiritismo é uma religião, mas religião sem sacerdotes,
sem templos, sem cultos exteriores, que não se apoia em nenhum dogma
particular.”
4. O que
diferencia o Espiritismo das religiões convencionais
- Ausência de dogmas: a Doutrina Espírita se
fundamenta na razão e na experiência, não em artigos de fé impostos.
- Triplo aspecto: ciência, filosofia e moral
(religião no sentido amplo).
- Não é culto: o Espiritismo não possui liturgias, ritos ou
organizações hierárquicas típicas das religiões.
- Universalismo moral: sua essência está na
prática da caridade e na busca pelo progresso espiritual.
Conclusão
O estudo da palavra religião revela que seu
significado é amplo, podendo remeter tanto ao culto ritualístico quanto ao laço
moral e espiritual que liga o homem a Deus. Nesse segundo sentido, o
Espiritismo é uma religião: não de formas exteriores, mas de sentimentos e
princípios universais.
Para Allan Kardec, a verdadeira religião está na vivência
da lei de amor e caridade, não em dogmas ou cerimônias. Por isso, o
Espiritismo é religião no sentido filosófico e moral, capaz de religar o homem ao
Criador pela via da razão, da fraternidade e da evolução espiritual.
Referências
KARDEC, Allan.
- O Livro dos Espíritos. 1857.
- O Livro dos Médiuns. 1861.
- O que é o Espiritismo. 1859.
- O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.
- A Gênese. 1868.
- Obras Póstumas. 1890.
- Revista Espírita (1858-1869).
Estudos complementares:
- RIZZINI, Carlos Imbassahy. O Espiritismo e as Religiões.
FEB, 1975.
- PIRES, José Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo.
Paidéia, 1979.
- WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco. Allan Kardec: O Educador e o
Codificador. FEB, 1979.
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