segunda-feira, 18 de agosto de 2025

O DEUS DE SPINOZA E O DEUS DA DOUTRINA ESPÍRITA DE ALLAN KARDEC
UM ESTUDO COMPARATIVO
- A Era do Espírito -

1. Introdução

A concepção de Deus constitui um dos pontos centrais de toda reflexão filosófica e religiosa. Enquanto Baruch Spinoza (1632–1677) propôs uma visão inovadora de Deus como natureza — Deus sive natura — Allan Kardec (1804–1869), ao codificar o Espiritismo, apresentou uma concepção racional de Deus que, embora se afaste do teísmo antropomórfico tradicional, mantém diferenças fundamentais em relação ao panteísmo spinozano. Este estudo busca comparar essas duas visões, à luz das obras fundamentais da Codificação Espírita (O Livro dos Espíritos, A Gênese, O Evangelho segundo o Espiritismo, entre outras) e da Revista Espírita (1858–1869).

2. O Deus de Spinoza

2.1 Imanência

Spinoza rompe com a ideia de um Deus transcendente, concebendo-O como imanente: Deus não está fora da criação, mas é a própria natureza e suas leis necessárias.

2.2 Substância Única

Há apenas uma substância: Deus, infinito e eterno. Tudo o que existe são modos ou expressões dessa substância única.

2.3 Monismo

A realidade é una, sem distinção ontológica entre espírito e matéria; ambos são atributos da mesma substância.

2.4 Causa Imanente

Deus não cria o mundo a partir do nada nem é um legislador externo, mas a própria causa imanente do real.

2.5 Conhecimento de Deus

Conhecer as leis da natureza equivale a conhecer Deus, pois Ele não é pessoa, mas razão universal manifesta.

2.6 Ética e Liberdade

A liberdade não é livre-arbítrio, mas a compreensão racional da necessidade. O homem é livre quando compreende e aceita as leis universais.

2.7 Panteísmo

Embora Spinoza não utilizasse esse termo, sua filosofia foi interpretada como panteísta: Deus está em tudo e tudo é Deus.

2.8 Rejeição do Antropomorfismo

Deus não pensa, não ama, não deseja. É impessoal, sem atributos humanos.

3. O Deus da Doutrina Espírita

3.1 Definição

A questão n.º 1 de O Livro dos Espíritos estabelece:

“Que é Deus?” — Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.
Aqui, Kardec evita definir a essência de Deus, limitando-se a descrevê-Lo pelos efeitos que se manifestam na criação.

3.2 Transcendência e Imanência

Para o Espiritismo, Deus é distinto do universo, mas presente em todas as leis naturais. Ele é transcendente como Criador, mas imanente em sua obra pela ação de Suas leis.

3.3 Pluralidade Ontológica

O Espiritismo não adota o monismo de Spinoza. Espírito e matéria são princípios distintos, criados por Deus e regidos por leis universais (O Livro dos Espíritos, questões 27–30).

3.4 Causa Primária

Deus é causa primária e não causa imanente. Ele cria e sustenta o universo, mas não se confunde com ele.

3.5 Conhecimento de Deus

Conhecer Deus é conhecer Suas leis morais e naturais, inscritas tanto no cosmos quanto na consciência humana. Kardec afirma: “Deus prova a sua grandeza e o seu poder pela imutabilidade de suas leis” (O Livro dos Espíritos, q. 13).

3.6 Ética e Liberdade

O Espiritismo afirma o livre-arbítrio do Espírito. A liberdade consiste em escolher entre o bem e o mal, orientando-se pela lei moral. O progresso espiritual resulta do uso consciente dessa liberdade (Revista Espírita, julho de 1860, “Da liberdade, da fatalidade e do futuro”).

3.7 Rejeição do Antropomorfismo

Deus não é antropomórfico: não possui paixões humanas, não se irrita, não pune arbitrariamente. Sua justiça se manifesta nas leis universais e na lei de causa e efeito.

3.8 Superação do Panteísmo

Na Revista Espírita (setembro de 1864), Kardec critica o panteísmo spinozano por dissolver a individualidade da alma em Deus, o que contraria as provas da sobrevivência e da identidade pessoal dos Espíritos comunicantes.

4. Convergências

1.    Rejeição do antropomorfismo: Tanto Spinoza quanto Kardec rejeitam a visão de um Deus à imagem e semelhança humana.

2.    Deus revelado nas leis da natureza: Ambos afirmam que o conhecimento da ordem natural é caminho para conhecer Deus.

3.    Racionalidade: Tanto Spinoza quanto o Espiritismo buscam compreender Deus por meio da razão, e não apenas da fé cega.

5. Divergências

1. Natureza de Deus:

    • Spinoza: Deus é a própria natureza (panteísmo, monismo).
    • Espiritismo: Deus é distinto da natureza, causa primária e inteligência suprema.
2. Espírito e Matéria:
    • Spinoza: atributos de uma mesma substância.
    • Espiritismo: princípios distintos, criados por Deus.
3. Liberdade:
    • Spinoza: liberdade é compreender a necessidade.
    • Espiritismo: liberdade é escolher entre o bem e o mal.
4. Imortalidade da Alma:
    • Spinoza: dissolve-se na substância divina, sem individualidade eterna.
    • Espiritismo: o Espírito é imortal, conserva sua identidade e progride indefinidamente.
5. Causa:
    • Spinoza: causa imanente, Deus não cria externamente.
    • Espiritismo: causa primária, Deus cria os princípios e as leis que regem o universo.

6. Considerações Finais

O Deus de Spinoza e o Deus de Kardec convergem ao rejeitar imagens antropomórficas e ao propor que conhecer as leis da natureza é conhecer o divino. Contudo, a filosofia spinozana dissolve a individualidade do ser humano no todo da substância única, enquanto a Doutrina Espírita preserva a transcendência de Deus e a individualidade imortal do Espírito.

O Espiritismo, diferentemente do panteísmo, reconhece em Deus a inteligência suprema e causa primária, distinta da criação, mas imanente por Suas leis universais. Essa diferença é crucial, pois garante a noção de progresso individual e coletivo, fundamento da moral espírita.

Assim, enquanto Spinoza oferece uma metafísica racional do universo como expressão necessária de uma única substância, Kardec propõe uma teodiceia dinâmica, em que Deus é justo e bom, e em que cada Espírito é chamado à liberdade e à responsabilidade de seu próprio aperfeiçoamento.

7. Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858–1869).
  • SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica. 1677.
  • CHAUI, Marilena. A nervura do real: Imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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