1.
Introdução
A concepção de Deus constitui um dos pontos
centrais de toda reflexão filosófica e religiosa. Enquanto Baruch Spinoza
(1632–1677) propôs uma visão inovadora de Deus como natureza — Deus sive
natura — Allan Kardec (1804–1869), ao codificar o Espiritismo, apresentou
uma concepção racional de Deus que, embora se afaste do teísmo antropomórfico
tradicional, mantém diferenças fundamentais em relação ao panteísmo spinozano.
Este estudo busca comparar essas duas visões, à luz das obras fundamentais da
Codificação Espírita (O Livro dos Espíritos, A Gênese, O
Evangelho segundo o Espiritismo, entre outras) e da Revista Espírita
(1858–1869).
2. O Deus
de Spinoza
2.1 Imanência
Spinoza rompe com a ideia de um
Deus transcendente, concebendo-O como imanente: Deus não está fora da criação,
mas é a própria natureza e suas leis necessárias.
2.2 Substância Única
Há apenas uma substância: Deus,
infinito e eterno. Tudo o que existe são modos ou expressões dessa substância
única.
2.3 Monismo
A realidade é una, sem distinção
ontológica entre espírito e matéria; ambos são atributos da mesma substância.
2.4 Causa Imanente
Deus não cria o mundo a partir do
nada nem é um legislador externo, mas a própria causa imanente do real.
2.5 Conhecimento de Deus
Conhecer as leis da natureza
equivale a conhecer Deus, pois Ele não é pessoa, mas razão universal manifesta.
2.6 Ética e Liberdade
A liberdade não é livre-arbítrio,
mas a compreensão racional da necessidade. O homem é livre quando compreende e
aceita as leis universais.
2.7 Panteísmo
Embora Spinoza não utilizasse
esse termo, sua filosofia foi interpretada como panteísta: Deus está em tudo e
tudo é Deus.
2.8 Rejeição do Antropomorfismo
Deus não pensa, não ama, não
deseja. É impessoal, sem atributos humanos.
3. O Deus
da Doutrina Espírita
3.1 Definição
A questão n.º 1 de O Livro dos
Espíritos estabelece:
“Que é Deus?” — Deus é a
inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.
Aqui, Kardec evita definir a essência de Deus, limitando-se a descrevê-Lo pelos
efeitos que se manifestam na criação.
3.2 Transcendência e Imanência
Para o Espiritismo, Deus é
distinto do universo, mas presente em todas as leis naturais. Ele é
transcendente como Criador, mas imanente em sua obra pela ação de Suas leis.
3.3 Pluralidade Ontológica
O Espiritismo não adota o monismo
de Spinoza. Espírito e matéria são princípios distintos, criados por Deus e
regidos por leis universais (O Livro dos Espíritos, questões 27–30).
3.4 Causa Primária
Deus é causa primária e não causa
imanente. Ele cria e sustenta o universo, mas não se confunde com ele.
3.5 Conhecimento de Deus
Conhecer Deus é conhecer Suas
leis morais e naturais, inscritas tanto no cosmos quanto na consciência humana.
Kardec afirma: “Deus prova a sua grandeza e o seu poder pela imutabilidade de
suas leis” (O Livro dos Espíritos, q. 13).
3.6 Ética e Liberdade
O Espiritismo afirma o
livre-arbítrio do Espírito. A liberdade consiste em escolher entre o bem e o
mal, orientando-se pela lei moral. O progresso espiritual resulta do uso
consciente dessa liberdade (Revista Espírita, julho de 1860, “Da
liberdade, da fatalidade e do futuro”).
3.7 Rejeição do Antropomorfismo
Deus não é antropomórfico: não
possui paixões humanas, não se irrita, não pune arbitrariamente. Sua justiça se
manifesta nas leis universais e na lei de causa e efeito.
3.8 Superação do Panteísmo
Na Revista Espírita
(setembro de 1864), Kardec critica o panteísmo spinozano por dissolver a
individualidade da alma em Deus, o que contraria as provas da sobrevivência e
da identidade pessoal dos Espíritos comunicantes.
4.
Convergências
1.
Rejeição do antropomorfismo:
Tanto Spinoza quanto Kardec rejeitam a visão de um Deus à imagem e semelhança
humana.
2.
Deus revelado nas leis da natureza: Ambos
afirmam que o conhecimento da ordem natural é caminho para conhecer Deus.
3.
Racionalidade: Tanto Spinoza quanto o
Espiritismo buscam compreender Deus por meio da razão, e não apenas da fé cega.
5. Divergências
1. Natureza de Deus:
- Spinoza: Deus é a própria natureza (panteísmo, monismo).
- Espiritismo: Deus é distinto da natureza, causa primária e inteligência suprema.
2. Espírito e Matéria:
- Spinoza: atributos de uma mesma substância.
- Espiritismo: princípios distintos, criados por Deus.
3. Liberdade:
- Spinoza: liberdade é compreender a necessidade.
- Espiritismo: liberdade é escolher entre o bem e o mal.
4. Imortalidade da Alma:
- Spinoza: dissolve-se na substância divina, sem individualidade eterna.
- Espiritismo: o Espírito é imortal, conserva sua identidade e progride indefinidamente.
5. Causa:
- Spinoza: causa imanente, Deus não cria externamente.
- Espiritismo: causa primária, Deus cria os princípios e as leis que regem o universo.
6.
Considerações Finais
O Deus de Spinoza e o Deus de Kardec convergem ao
rejeitar imagens antropomórficas e ao propor que conhecer as leis da natureza é
conhecer o divino. Contudo, a filosofia spinozana dissolve a individualidade do
ser humano no todo da substância única, enquanto a Doutrina Espírita preserva a
transcendência de Deus e a individualidade imortal do Espírito.
O Espiritismo, diferentemente do panteísmo,
reconhece em Deus a inteligência suprema e causa primária, distinta da criação,
mas imanente por Suas leis universais. Essa diferença é crucial, pois garante a
noção de progresso individual e coletivo, fundamento da moral espírita.
Assim, enquanto Spinoza oferece uma metafísica
racional do universo como expressão necessária de uma única substância, Kardec
propõe uma teodiceia dinâmica, em que Deus é justo e bom, e em que cada
Espírito é chamado à liberdade e à responsabilidade de seu próprio
aperfeiçoamento.
7.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 1864.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita (1858–1869).
- SPINOZA, Baruch. Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica.
1677.
- CHAUI, Marilena. A nervura do real: Imanência e liberdade em
Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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