sexta-feira, 22 de agosto de 2025

O MOVIMENTO ESPÍRITA E A CODIFICAÇÃO:
168 ANOS DE O LIVRO DOS ESPÍRITOS
- A Era do Espírito -

Introdução

Em 18 de abril de 1857, Allan Kardec publicou O Livro dos Espíritos, marco inicial da Doutrina Espírita. Essa obra, elaborada com base no ensino dos Espíritos Superiores, estabeleceu o que o próprio Kardec chamou de “estatuto permanente” do Espiritismo, ou seja, seus princípios fundamentais — imutáveis em essência, mas sempre abertos ao progresso das ciências e à evolução do pensamento humano.

Passados 168 anos, o movimento espírita — especialmente no Brasil, onde a Doutrina encontrou terreno fértil para expansão — apresenta desafios que parecem, em muitos aspectos, confirmar as previsões do Codificador quanto às dificuldades futuras. Diversidade de interpretações, sincretismos, tendências espiritualistas alheias e disputas organizacionais demonstram que a unidade doutrinária proposta por Kardec ainda não foi plenamente alcançada.

Este artigo reflete sobre esses pontos à luz da Codificação, da Revista Espírita (1858-1869) e de Obras Póstumas, propondo caminhos para se manter a base da Doutrina Espírita em sua essência.

1. A Difusão do Espiritismo e os Desafios do Sincretismo

Ao ser transplantado da França para o Brasil, ainda no final do século XIX, o Espiritismo encontrou inevitavelmente contato com crenças locais. O predomínio do catolicismo, a forte religiosidade popular e as práticas de matriz africana influenciaram a forma como a Doutrina foi recebida.

Não surpreende, portanto, que até órgãos oficiais, como o IBGE, tenham registrado duas vertentes de “Espiritismo”: a “Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec” e a “Umbanda surgida no século XX”. Esse fenômeno cultural, embora compreensível, evidencia a dificuldade de se caracterizar corretamente o Espiritismo em sua identidade original.

Kardec, em diversos artigos da Revista Espírita, advertiu contra a confusão de ideias e contra a introdução de elementos estranhos à Doutrina, salientando que:

“O Espiritismo marcha com a verdade; não teme o exame, porque tem por base a própria lei natural.” (RE, janeiro de 1862)

2. A Natureza do Espiritismo: Doutrina de Ação Renovadora

O Espiritismo não é uma doutrina de estufa, isolada do mundo. Pelo contrário, deve interagir com a sociedade, influenciando-a com seus princípios universais: a crença em Deus, a imortalidade da alma, a comunicabilidade dos Espíritos e a lei de progresso.

Misturar-se, no entanto, não significa diluir-se. Kardec sempre distinguiu a abertura para o diálogo da perda de identidade. Por isso insistiu na importância do “método espírita” — a comparação, a análise racional e a fidelidade às bases da Codificação.

Em O Livro dos Médiuns, orienta:

“Toca ao leitor separar o bom do mau, o verdadeiro do falso.”
(LM, Primeira Parte, cap. III, item 35)

3. O Problema da Organização do Movimento Espírita

Um dos pontos centrais do debate atual é a falta de unidade organizacional. Kardec previu essa dificuldade e, em Obras Póstumas, deixou o texto intitulado “Constituição do Espiritismo”, no qual propõe princípios de ordem administrativa e organizacional para preservar a Doutrina de deturpações.

Ele advertiu que divergências internas poderiam conduzir a cisões, seitas e deformações, transformando o Espiritismo em mera religião entre tantas outras. De fato, como observamos, surgiram tendências de “outros pensamentos espiritualistas”, disputas federativas, sincretismos e práticas estranhas ao ensino original.

Se houvesse maior atenção ao projeto constitucional tratado por Kardec na Revista Espírita (dezembro de 1868, “Constituição Transitória do Espiritismo”) e em Obras Póstumas (1890, segunda parte, “Constituição do Espiritismo – Exposição de Motivos de Organização”), talvez muitos impasses atuais pudessem ter sido prevenidos.

4. A Diversidade de Interpretações e os Riscos da Descaracterização

A multiplicidade de ideias dentro do movimento espírita é fenômeno natural e, em certa medida, saudável. No entanto, essa diversidade não pode transmutar o Espiritismo em algo irreconhecível.

A descaracterização — quando se mistura a Doutrina com práticas não espíritas, como cromoterapia, TCI ou concepções religiosas divergentes — compromete sua identidade e seu papel como doutrina filosófica, científica e moral. Kardec foi claro:

“Proibir um livro é dar mostras de que o tememos. O Espiritismo [...] chama a atenção para tais obras, a fim de que possam julgar por comparação.”
(Catálogo Racional das Obras para se Fundar uma Biblioteca Espírita, 1869)

Ou seja, o problema não é o estudo comparativo, mas a fusão indiscriminada.

5. Vozes em Defesa da Metodologia Espírita

Felizmente, ao longo da história do Espiritismo no Brasil, surgiram periódicos, grupos e estudiosos comprometidos com a preservação das bases da Doutrina Espírita em sua essência.

Essas iniciativas, embora representem uma parcela minoritária dentro do movimento, têm desempenhado papel fundamental para a difusão do conhecimento da Doutrina tal como foi codificada por Allan Kardec.

A defesa dos princípios essenciais do Espiritismo não deve ser confundida com atitudes de fechamento ou fundamentalismo. Trata-se, antes, de zelar pela fidelidade metodológica, garantindo a distinção necessária entre o que efetivamente constitui a Doutrina Espírita e aquilo que lhe é estranho ou fruto de interpretações particulares.

6. Caminhos para o Futuro: Reorganizar e Reunificar

A pergunta permanece: poderá o movimento espírita reorganizar-se e redirecionar seus rumos após tantos equívocos?

A resposta parece positiva, desde que sejam respeitados alguns princípios:

  • Estudo da Codificação Espírita, entendida como núcleo essencial da Doutrina;
  • Método comparativo, capaz de distinguir o verdadeiro do falso;
  • Organização federativa mais representativa e coesa, talvez por meio de uma Confederação Espírita;
  • Diálogo com a sociedade, sem perda da identidade doutrinária.

Kardec, se vivo estivesse, certamente nos convidaria a retornar sempre às fontes seguras: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese, além da leitura atenta da Revista Espírita.

Conclusão

O futuro do Espiritismo não depende apenas do número de adeptos, mas, sobretudo, do conhecimento fundamental que seus seguidores possuam acerca da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec — em sua essência e integridade.

Passados 168 anos desde a publicação de O Livro dos Espíritos, o desafio que se impõe continua sendo aquele previsto pelo Codificador: conservar os princípios da Doutrina Espírita sem, contudo, afastar-se do mundo e de suas transformações.

Cabe a cada espírita assumir a responsabilidade de colaborar para que a Doutrina dos Espíritos permaneça fiel à sua missão original: ser luz para a razão, consolo para o coração e roteiro seguro para a evolução da Humanidade.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 1864.
  • KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 1865.
  • KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1858-1869.
  • KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 1890 (1ª ed. póstuma).
  • KARDEC, Allan. Catálogo Racional das Obras para se Fundar uma Biblioteca Espírita. 1869.

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