Introdução
Em 18
de abril de 1857, Allan Kardec publicou O Livro dos Espíritos, marco
inicial da Doutrina Espírita. Essa obra, elaborada com base no ensino dos Espíritos
Superiores, estabeleceu o que o próprio Kardec chamou de “estatuto permanente”
do Espiritismo, ou seja, seus princípios fundamentais — imutáveis em essência,
mas sempre abertos ao progresso das ciências e à evolução do pensamento humano.
Passados
168 anos, o movimento espírita — especialmente no Brasil, onde a Doutrina
encontrou terreno fértil para expansão — apresenta desafios que parecem, em
muitos aspectos, confirmar as previsões do Codificador quanto às dificuldades
futuras. Diversidade de interpretações, sincretismos, tendências
espiritualistas alheias e disputas organizacionais demonstram que a unidade
doutrinária proposta por Kardec ainda não foi plenamente alcançada.
Este
artigo reflete sobre esses pontos à luz da Codificação, da Revista Espírita
(1858-1869) e de Obras Póstumas, propondo caminhos para se manter a base
da Doutrina Espírita em sua essência.
1. A Difusão do Espiritismo e os Desafios do
Sincretismo
Ao ser
transplantado da França para o Brasil, ainda no final do século XIX, o Espiritismo
encontrou inevitavelmente contato com crenças locais. O predomínio do
catolicismo, a forte religiosidade popular e as práticas de matriz africana
influenciaram a forma como a Doutrina foi recebida.
Não
surpreende, portanto, que até órgãos oficiais, como o IBGE, tenham registrado
duas vertentes de “Espiritismo”: a “Doutrina Espírita codificada por Allan
Kardec” e a “Umbanda surgida no século XX”. Esse fenômeno cultural, embora
compreensível, evidencia a dificuldade de se caracterizar corretamente o Espiritismo
em sua identidade original.
Kardec,
em diversos artigos da Revista Espírita, advertiu contra a confusão de
ideias e contra a introdução de elementos estranhos à Doutrina, salientando
que:
“O Espiritismo marcha
com a verdade; não teme o exame, porque tem por base a própria lei natural.” (RE, janeiro de
1862)
2. A Natureza do Espiritismo: Doutrina de Ação
Renovadora
O
Espiritismo não é uma doutrina de estufa, isolada do mundo. Pelo contrário,
deve interagir com a sociedade, influenciando-a com seus princípios universais:
a crença em Deus, a imortalidade da alma, a comunicabilidade dos Espíritos e a
lei de progresso.
Misturar-se,
no entanto, não significa diluir-se. Kardec sempre distinguiu a abertura para o
diálogo da perda de identidade. Por isso insistiu na importância do “método
espírita” — a comparação, a análise racional e a fidelidade às bases da
Codificação.
Em O
Livro dos Médiuns, orienta:
“Toca ao leitor separar
o bom do mau, o verdadeiro do falso.”
(LM, Primeira
Parte, cap. III, item 35)
3. O Problema da Organização do Movimento Espírita
Um dos
pontos centrais do debate atual é a falta de unidade organizacional. Kardec
previu essa dificuldade e, em Obras Póstumas, deixou o texto intitulado
“Constituição do Espiritismo”, no qual propõe princípios de ordem
administrativa e organizacional para preservar a Doutrina de deturpações.
Ele
advertiu que divergências internas poderiam conduzir a cisões, seitas e
deformações, transformando o Espiritismo em mera religião entre tantas outras.
De fato, como observamos, surgiram tendências de “outros pensamentos
espiritualistas”, disputas federativas, sincretismos e práticas estranhas ao
ensino original.
Se
houvesse maior atenção ao projeto constitucional tratado por Kardec na Revista
Espírita (dezembro de 1868, “Constituição Transitória do Espiritismo”) e em
Obras Póstumas (1890, segunda parte, “Constituição do Espiritismo –
Exposição de Motivos de Organização”), talvez muitos impasses atuais pudessem ter
sido prevenidos.
4. A Diversidade de Interpretações e os Riscos da
Descaracterização
A
multiplicidade de ideias dentro do movimento espírita é fenômeno natural e, em
certa medida, saudável. No entanto, essa diversidade não pode transmutar o
Espiritismo em algo irreconhecível.
A
descaracterização — quando se mistura a Doutrina com práticas não espíritas,
como cromoterapia, TCI ou concepções religiosas divergentes — compromete sua
identidade e seu papel como doutrina filosófica, científica e moral. Kardec foi
claro:
“Proibir
um livro é dar mostras de que o tememos. O Espiritismo [...] chama a atenção
para tais obras, a fim de que possam julgar por comparação.”
(Catálogo Racional das Obras para se Fundar uma Biblioteca Espírita,
1869)
Ou
seja, o problema não é o estudo comparativo, mas a fusão indiscriminada.
5. Vozes em Defesa da Metodologia Espírita
Felizmente,
ao longo da história do Espiritismo no Brasil, surgiram periódicos, grupos e
estudiosos comprometidos com a preservação das bases da Doutrina Espírita em
sua essência.
Essas
iniciativas, embora representem uma parcela minoritária dentro do movimento,
têm desempenhado papel fundamental para a difusão do conhecimento da Doutrina
tal como foi codificada por Allan Kardec.
A
defesa dos princípios essenciais do Espiritismo não deve ser confundida com
atitudes de fechamento ou fundamentalismo. Trata-se, antes, de zelar pela
fidelidade metodológica, garantindo a distinção necessária entre o que
efetivamente constitui a Doutrina Espírita e aquilo que lhe é estranho ou fruto
de interpretações particulares.
6. Caminhos para o Futuro: Reorganizar e Reunificar
A
pergunta permanece: poderá o movimento espírita reorganizar-se e redirecionar
seus rumos após tantos equívocos?
A
resposta parece positiva, desde que sejam respeitados alguns princípios:
- Estudo da
Codificação Espírita, entendida como núcleo essencial da Doutrina;
- Método comparativo,
capaz de distinguir o verdadeiro do falso;
- Organização
federativa mais representativa e coesa, talvez por meio de uma Confederação
Espírita;
- Diálogo com a
sociedade, sem perda da identidade doutrinária.
Kardec,
se vivo estivesse, certamente nos convidaria a retornar sempre às fontes
seguras: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O
Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese,
além da leitura atenta da Revista Espírita.
Conclusão
O
futuro do Espiritismo não depende apenas do número de adeptos, mas, sobretudo,
do conhecimento fundamental que seus seguidores possuam acerca da Doutrina
Espírita codificada por Allan Kardec — em sua essência e integridade.
Passados
168 anos desde a publicação de O Livro dos Espíritos, o desafio que se
impõe continua sendo aquele previsto pelo Codificador: conservar os princípios
da Doutrina Espírita sem, contudo, afastar-se do mundo e de suas
transformações.
Cabe a
cada espírita assumir a responsabilidade de colaborar para que a Doutrina dos
Espíritos permaneça fiel à sua missão original: ser luz para a razão, consolo
para o coração e roteiro seguro para a evolução da Humanidade.
Referências
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O
Livro dos Médiuns. 1861.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho Segundo o Espiritismo. 1864.
- KARDEC, Allan. O
Céu e o Inferno. 1865.
- KARDEC, Allan. A
Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. Revista
Espírita. 1858-1869.
- KARDEC, Allan. Obras
Póstumas. 1890 (1ª ed. póstuma).
- KARDEC, Allan. Catálogo
Racional das Obras para se Fundar uma Biblioteca Espírita. 1869.
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