Um
estudo comparativo entre a Revista Espírita de dezembro de 1864 e dezembro de
1868
Introdução
Em dois momentos distintos da Revista Espírita
– dezembro de 1864 e dezembro de 1868 – Allan Kardec tratou de questões
fundamentais para compreender a essência da Doutrina Espírita: a natureza do
pensamento, a comunhão espiritual, a fraternidade e o caráter religioso do
Espiritismo.
No primeiro texto, Sessão anual comemorativa dos
mortos (1864), Kardec aprofunda o papel do pensamento como atributo
essencial do Espírito e a força moral da comunhão de intenções. Já em Da
natureza do Espiritismo (conferência de 1º de novembro de 1868, publicada
em dezembro do mesmo ano), o Codificador enfrenta de forma direta a questão: em
que medida o Espiritismo pode ou não ser chamado de religião?
Este artigo propõe analisar esses dois momentos,
distinguindo seus conteúdos e integrando-os ao conjunto das obras espíritas
codificadas por Allan Kardec.
1.
Revista Espírita de dezembro de 1864 – Sessão anual comemorativa dos mortos
1.1 O pensamento como atributo essencial do Espírito
Kardec afirma:
“O pensamento é o atributo
característico do ser espiritual; é ele que distingue o espírito da matéria:
sem o pensamento, o espírito não seria espírito.” (Revista Espírita,
dez. 1864).
·
Significado: o Espírito é essencialmente
inteligência em ação; o pensamento é sua marca ontológica.
·
Relação doutrinária:
o O
Livro dos Espíritos, q. 23: “O espírito é o princípio inteligente do
Universo.”
o A
Gênese, cap. XIV: o pensamento é força atuante sobre os
fluidos.
1.2 Comunhão de pensamento
“Comunhão de pensamento quer
dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de desejo, de aspiração.”
(Revista Espírita, dez. 1864).
·
Esse trecho antecipa a noção de egrégora:
uma força espiritual criada pela sintonia mental.
·
Em O Livro dos Médiuns (cap. XXIX), Kardec
já havia afirmado que a harmonia das reuniões espíritas depende da comunhão de
sentimentos e pensamentos.
1.3 A fraternidade como lei natural
“A doutrina que funda os laços da
fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas
sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da natureza.” (Revista
Espírita, dez. 1864).
Aqui se encontra uma das ideias
mais elevadas do Espiritismo: a fraternidade não é convenção social, mas
decorre da lei natural.
·
O Livro dos Espíritos,
Livro Terceiro (Leis Morais): a lei de sociedade e a lei de igualdade
fundamentam a fraternidade como ordem universal.
2.
Revista Espírita de dezembro de 1868 – Conferência sobre a natureza religiosa
do Espiritismo
Quatro anos depois, Kardec volta ao tema numa
conferência pública (1º de novembro de 1868), publicada no número de dezembro.
Ali ele faz distinção fundamental: o Espiritismo é e não é religião, dependendo
do sentido atribuído à palavra.
2.1 O Espiritismo, em sentido filosófico, é religião
Kardec declara:
“Sim, senhores, sem dúvida, o
Espiritismo é uma religião, e nós nos ufanamos com isso, porque ele é a
verdadeira religião, aquela que funda os laços da fraternidade e da comunhão de
pensamentos.” (Revista Espírita, dez. 1868).
·
Sentido filosófico:
religião como religare, união dos homens com Deus e entre si pela lei
natural.
·
O Evangelho segundo o Espiritismo,
cap. I, item II: a moral do Cristo é a essência da verdadeira religião.
2.2 Por que o Espiritismo não é religião no sentido vulgar
Kardec explica:
“Se o Espiritismo se dissesse
religião, o público não veria aí senão uma nova edição dos princípios absolutos
em matéria de fé; uma casta sacerdotal com hierarquias, cerimônias e privilégios.”
(Revista Espírita, dez. 1868).
·
Sentido vulgar: religião associada a culto
exterior, clero, dogma e ritualismo.
·
Por isso, Kardec prefere falar em Doutrina
Espírita, para evitar confusão com igrejas instituídas.
·
O que é o Espiritismo:
define a doutrina como ciência de observação e filosofia de consequências
morais, sem sacerdócio nem culto.
3.
Síntese Comparativa: 1864 e 1868
- 1864: foco no pensamento como essência do
Espírito, na comunhão espiritual e na fraternidade como lei natural. É um
texto de cunho mais espiritual e filosófico.
- 1868: foco na questão terminológica e social do
Espiritismo como religião, distinguindo o sentido filosófico (positivo)
do sentido institucional (negativo) da palavra. É um texto de cunho
mais definidor e pedagógico.
Ambos os artigos se complementam:
- O de 1864 estabelece a base metafísica e moral (o pensamento e a
fraternidade).
- O de 1868 esclarece a natureza institucional e filosófica do
Espiritismo perante a sociedade.
Conclusão
Os dois artigos da Revista Espírita –
dezembro de 1864 e dezembro de 1868 – representam momentos complementares da
obra de Allan Kardec:
- O primeiro aprofunda a essência do ser espiritual e a força da
comunhão de pensamentos, mostrando que a fraternidade é lei natural.
- O segundo esclarece a natureza religiosa do Espiritismo,
distinguindo seu caráter universal e moral da noção vulgar de religião
ligada a culto e sacerdócio.
Assim, o verdadeiro significado desses textos é que
o Espiritismo se constitui como a religião da consciência, fundada na lei
natural do pensamento, da fraternidade e do progresso espiritual, sem dogmas,
sem hierarquias sacerdotais e sem rituais exteriores.
Nota:
Embora o Espiritismo possua um caráter religioso no
sentido filosófico — por unir o homem a Deus e ao próximo, fundamentando a
fraternidade e a moral —, Allan Kardec sempre destacou a conveniência de
apresentá-lo como Filosofia e Ciência com consequências morais,
para evitar que fosse confundido com religião no sentido vulgar, associada a
cultos, rituais, hierarquias sacerdotais e dogmas. Assim, o Espiritismo mantém
sua identidade de doutrina racional, universal e livre, sem perder a dimensão
espiritual e moral que lhe é essencial.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns.
- KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo.
- KARDEC, Allan. A Gênese.
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita, dezembro de 1864 – Sessão
anual comemorativa dos mortos.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita, dezembro de 1868 – Da
natureza do Espiritismo.
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