quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O PENSAMENTO, A COMUNHÃO ESPIRITUAL
E A NATUREZA RELIGIOSA DO ESPIRITISMO
- A Era do Espírito -

Um estudo comparativo entre a Revista Espírita de dezembro de 1864 e dezembro de 1868

Introdução

Em dois momentos distintos da Revista Espírita – dezembro de 1864 e dezembro de 1868 – Allan Kardec tratou de questões fundamentais para compreender a essência da Doutrina Espírita: a natureza do pensamento, a comunhão espiritual, a fraternidade e o caráter religioso do Espiritismo.

No primeiro texto, Sessão anual comemorativa dos mortos (1864), Kardec aprofunda o papel do pensamento como atributo essencial do Espírito e a força moral da comunhão de intenções. Já em Da natureza do Espiritismo (conferência de 1º de novembro de 1868, publicada em dezembro do mesmo ano), o Codificador enfrenta de forma direta a questão: em que medida o Espiritismo pode ou não ser chamado de religião?

Este artigo propõe analisar esses dois momentos, distinguindo seus conteúdos e integrando-os ao conjunto das obras espíritas codificadas por Allan Kardec.

1. Revista Espírita de dezembro de 1864 – Sessão anual comemorativa dos mortos

1.1 O pensamento como atributo essencial do Espírito

Kardec afirma:

“O pensamento é o atributo característico do ser espiritual; é ele que distingue o espírito da matéria: sem o pensamento, o espírito não seria espírito.” (Revista Espírita, dez. 1864).

·         Significado: o Espírito é essencialmente inteligência em ação; o pensamento é sua marca ontológica.

·         Relação doutrinária:

o    O Livro dos Espíritos, q. 23: “O espírito é o princípio inteligente do Universo.”

o    A Gênese, cap. XIV: o pensamento é força atuante sobre os fluidos.

1.2 Comunhão de pensamento

“Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de desejo, de aspiração.” (Revista Espírita, dez. 1864).

·         Esse trecho antecipa a noção de egrégora: uma força espiritual criada pela sintonia mental.

·         Em O Livro dos Médiuns (cap. XXIX), Kardec já havia afirmado que a harmonia das reuniões espíritas depende da comunhão de sentimentos e pensamentos.

1.3 A fraternidade como lei natural

“A doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da natureza.” (Revista Espírita, dez. 1864).

Aqui se encontra uma das ideias mais elevadas do Espiritismo: a fraternidade não é convenção social, mas decorre da lei natural.

·         O Livro dos Espíritos, Livro Terceiro (Leis Morais): a lei de sociedade e a lei de igualdade fundamentam a fraternidade como ordem universal.

2. Revista Espírita de dezembro de 1868 – Conferência sobre a natureza religiosa do Espiritismo

Quatro anos depois, Kardec volta ao tema numa conferência pública (1º de novembro de 1868), publicada no número de dezembro. Ali ele faz distinção fundamental: o Espiritismo é e não é religião, dependendo do sentido atribuído à palavra.

2.1 O Espiritismo, em sentido filosófico, é religião

Kardec declara:

“Sim, senhores, sem dúvida, o Espiritismo é uma religião, e nós nos ufanamos com isso, porque ele é a verdadeira religião, aquela que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos.” (Revista Espírita, dez. 1868).

·         Sentido filosófico: religião como religare, união dos homens com Deus e entre si pela lei natural.

·         O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. I, item II: a moral do Cristo é a essência da verdadeira religião.

2.2 Por que o Espiritismo não é religião no sentido vulgar

Kardec explica:

“Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com hierarquias, cerimônias e privilégios.” (Revista Espírita, dez. 1868).

·         Sentido vulgar: religião associada a culto exterior, clero, dogma e ritualismo.

·         Por isso, Kardec prefere falar em Doutrina Espírita, para evitar confusão com igrejas instituídas.

·         O que é o Espiritismo: define a doutrina como ciência de observação e filosofia de consequências morais, sem sacerdócio nem culto.

3. Síntese Comparativa: 1864 e 1868

  • 1864: foco no pensamento como essência do Espírito, na comunhão espiritual e na fraternidade como lei natural. É um texto de cunho mais espiritual e filosófico.
  • 1868: foco na questão terminológica e social do Espiritismo como religião, distinguindo o sentido filosófico (positivo) do sentido institucional (negativo) da palavra. É um texto de cunho mais definidor e pedagógico.

Ambos os artigos se complementam:

  • O de 1864 estabelece a base metafísica e moral (o pensamento e a fraternidade).
  • O de 1868 esclarece a natureza institucional e filosófica do Espiritismo perante a sociedade.

Conclusão

Os dois artigos da Revista Espírita – dezembro de 1864 e dezembro de 1868 – representam momentos complementares da obra de Allan Kardec:

  • O primeiro aprofunda a essência do ser espiritual e a força da comunhão de pensamentos, mostrando que a fraternidade é lei natural.
  • O segundo esclarece a natureza religiosa do Espiritismo, distinguindo seu caráter universal e moral da noção vulgar de religião ligada a culto e sacerdócio.

Assim, o verdadeiro significado desses textos é que o Espiritismo se constitui como a religião da consciência, fundada na lei natural do pensamento, da fraternidade e do progresso espiritual, sem dogmas, sem hierarquias sacerdotais e sem rituais exteriores.

Nota:

Embora o Espiritismo possua um caráter religioso no sentido filosófico — por unir o homem a Deus e ao próximo, fundamentando a fraternidade e a moral —, Allan Kardec sempre destacou a conveniência de apresentá-lo como Filosofia e Ciência com consequências morais, para evitar que fosse confundido com religião no sentido vulgar, associada a cultos, rituais, hierarquias sacerdotais e dogmas. Assim, o Espiritismo mantém sua identidade de doutrina racional, universal e livre, sem perder a dimensão espiritual e moral que lhe é essencial.

Referências

  • KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
  • KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns.
  • KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo.
  • KARDEC, Allan. A Gênese.
  • KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo.
  • KARDEC, Allan. Obras Póstumas.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita, dezembro de 1864 – Sessão anual comemorativa dos mortos.
  • KARDEC, Allan. Revista Espírita, dezembro de 1868 – Da natureza do Espiritismo.

 

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