Introdução
Em maio de 1864, a Revista Espírita, sob a
direção de Allan Kardec, publicou um estudo intitulado A alma pura de minha
irmã Henriette, a propósito da célebre obra Vida de Jesus, do
crítico e filósofo francês Ernest Renan (1823-1892). A dedicatória feita pelo
autor à memória de sua irmã tornou-se, segundo Kardec, um “trecho capital”, não
apenas pela emoção que exprime, mas sobretudo pela profissão de fé implícita
que nela se percebe.
Este episódio revela a riqueza do diálogo entre a
filosofia, a literatura e a Doutrina Espírita. Kardec não buscou atacar Renan,
mas sim destacar as consequências naturais de suas próprias palavras: ao reconhecer
a presença espiritual da irmã, o pensador francês, sem o saber, aproximava-se
dos princípios fundamentais revelados pelos Espíritos.
O presente artigo analisa esse episódio à luz da
Codificação Espírita, de obras complementares e da coleção da Revista
Espírita (1858-1869), evidenciando a importância filosófica e doutrinária
de tal reflexão.
A
dedicatória de Renan e a sobrevivência da alma
Renan escreve à irmã falecida como quem ainda a
sente viva, presente, companheira de suas reflexões e inspirações intelectuais.
Esse testemunho íntimo, longe de ser mero artifício literário, traduz a
convicção espontânea de que os laços de amor não se dissolvem com a morte.
A Doutrina Espírita confirma essa intuição. Em O
Livro dos Espíritos, encontramos:
- Questão 150: “A alma não é senão o Espírito encarnado,
sendo o corpo apenas seu envoltório.”
- Questões 153 e 155: a alma conserva sua
individualidade após a morte, mantendo sentimentos, pensamentos e
lembranças.
Assim, ao evocar a irmã, Renan não falava a um
mito, mas a uma consciência viva e presente, envolta em seu perispírito
— o laço sutil que assegura a individualidade e permite a comunicação
espiritual (O que é o Espiritismo, cap. II, itens 9-14).
Alma,
Espírito e perispírito: distinções necessárias
Kardec aproveita a oportunidade para elucidar uma
questão terminológica de grande importância: a diferença entre os conceitos de alma
e Espírito.
- Alma: princípio inteligente, o ser simples, núcleo
do pensamento e da consciência.
- Espírito: a alma associada ao perispírito, que lhe
garante individualidade e possibilidade de manifestação.
- Homem: a união da alma, do perispírito e do corpo
material (O Livro dos Espíritos, q. 23, 76; O que é o
Espiritismo, cap. II, itens 9-14).
A confusão entre esses termos foi causa de equívocos
filosóficos e teológicos ao longo dos séculos. O Espiritismo, ao estabelecer
com clareza esses conceitos, fornece uma chave racional para compreender os
fenômenos espirituais sem recorrer ao sobrenatural.
A crítica
de Kardec ao materialismo velado
Apesar da dedicatória, Renan, em sua obra, rejeita
o que chama de “superstições” relativas às comunicações espirituais. Kardec
observa, porém, que essa negação deriva do preconceito contra o “sobrenatural”
e do desconhecimento das leis naturais que regem o mundo invisível.
Assim como a eletricidade e a gravitação, outrora
tidas como impossíveis ou milagrosas, foram explicadas pela ciência, também as
manifestações espíritas se mostram como fenômenos naturais, regidos por leis
universais. Nesse sentido, o Espiritismo não cria fatos novos, mas os explica,
os classifica e os retira do campo do maravilhoso.
Consequências
filosóficas e espirituais
Ao declarar-se convicto da presença da irmã, Renan
admitia implicitamente:
- A sobrevivência da alma;
- A manutenção da individualidade após a morte;
- A possibilidade de comunicação entre os dois planos da vida.
O que faltava, segundo Kardec, era aceitar que tal
comunicação não se restringe à inspiração íntima, mas pode também se traduzir
em manifestações objetivas, estudadas e comprovadas pela ciência espírita.
Dessa forma, a dedicatória de Renan, ainda que não
intencionalmente, reforça os fundamentos espíritas, mostrando que a crença
espontânea no reencontro e na continuidade da vida está gravada no coração
humano.
Conclusão
O episódio de A alma pura de minha irmã
Henriette evidencia como a verdade espiritual se impõe, mesmo quando não
reconhecida plenamente pela razão crítica. Ernest Renan, em sua homenagem
emocionada, revela a força da intuição imortalista que atravessa os séculos e
as culturas.
O Espiritismo, com sua metodologia experimental e
filosófica, vem oferecer o complemento racional a essa fé espontânea,
demonstrando que a alma não é uma abstração, mas uma realidade viva,
inteligente e atuante.
A crítica de Kardec a Renan permanece atual: muitos
ainda rejeitam os fenômenos espíritas por preconceito ou apego a explicações
materialistas. Contudo, a lei natural que rege a vida e a morte, revelada pela
Doutrina dos Espíritos, assegura-nos que nossos laços de amor persistem além da
sepultura — e que a comunicação com aqueles que nos precederam no mundo
espiritual é não apenas possível, mas natural.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1859.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita – maio de 1864: A alma
pura de minha irmã Henriette.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita – janeiro de 1866: O
Espiritismo Toma Lugar na Filosofia e nos Conhecimentos Usuais.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. Obras
Póstumas.
- RENAN, Ernest. Vie de Jésus. Paris, 1863.
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