Introdução
No número de março de 1861 da Revista Espírita,
Allan Kardec comenta uma carta publicada no jornal Le Siècle, na qual o
doutor Riboli relata seu exame frenológico da cabeça de Giuseppe Garibaldi
(1807-1882), o célebre herói da unificação italiana.
O médico descreve, com entusiasmo, as proporções do
crânio do general, afirmando que a estrutura cerebral refletiria as elevadas
qualidades morais e intelectuais do personagem. Kardec, entretanto, não se
prende à figura política, nem ao exame científico em si: aproveita a ocasião
para discutir as implicações filosóficas da frenologia — ciência então
em voga — e confrontá-la com os princípios materialistas e espiritualistas.
Esse episódio abre campo para uma reflexão atual: a
inteligência e o gênio humano são apenas o produto da organização cerebral, ou
constituem atributos da alma imortal?
A
Frenologia e seus limites
A frenologia, fundada por Franz Joseph Gall
(1758-1828), sustentava que as faculdades humanas correspondiam a áreas
específicas do cérebro, cujo desenvolvimento poderia ser avaliado pela
conformação craniana.
Kardec observa que havia duas correntes entre os
frenólogos:
- Materialista – as faculdades seriam produto exclusivo dos
órgãos; sem cérebro, não haveria pensamento nem consciência.
- Espiritualista – os órgãos não criariam as faculdades,
apenas serviriam de instrumentos à alma, a verdadeira causa das
manifestações intelectuais e morais.
O exame de Riboli, embora entusiástico, não
esclarecia a qual dessas correntes o autor se filiava. Kardec, então, conduz o
raciocínio às suas consequências lógicas: se o gênio fosse apenas resultado do
acaso da conformação cerebral, então os maiores homens nada mais deveriam do
que a uma combinação fortuita da matéria — e, uma vez destruído o corpo, tudo
se extinguiria com ele.
O
Espírito como causa, o corpo como instrumento
O Espiritismo oferece uma explicação mais ampla e
racional:
- O Espírito é o ser pensante, imortal, causa primeira da
inteligência, da consciência e da vontade.
- O perispírito serve de intermediário entre a alma e o corpo
físico.
- O cérebro é apenas o instrumento pelo qual o Espírito se
manifesta durante a encarnação.
Em O Livro dos Espíritos, lemos:
- Questão 146: “A
alma exerce ação direta sobre a matéria? – Sim, sobre a matéria do corpo,
ao qual está ligada.”
- Questão 367: “A
influência dos órgãos sobre as faculdades é a mesma que a de um
instrumento imperfeito sobre a execução de uma obra.”
Portanto, a conformação cerebral pode facilitar ou
dificultar a manifestação das faculdades, mas não as cria. Da mesma forma que
um músico talentoso pode encontrar dificuldades com um instrumento defeituoso,
mas não perde sua capacidade essencial, o Espírito não depende da matéria para
existir ou para conservar suas aquisições.
Gênio,
mérito e reencarnação
Um ponto fundamental levantado por Kardec é a
questão da injustiça aparente: por que uns nascem com gênio e outros
não? Por que alguns possuem faculdades brilhantes enquanto outros parecem
limitados?
O materialismo não oferece resposta satisfatória,
pois atribui tudo ao acaso da natureza. O Espiritismo, ao contrário, esclarece
pela lei da reencarnação:
- O gênio é fruto de conquistas anteriores do Espírito.
- Cada existência representa uma etapa no desenvolvimento da alma.
- O que parece privilégio ou favoritismo divino é, na verdade, mérito
adquirido ao longo de múltiplas experiências.
Em O Livro dos Espíritos, encontramos:
- Questão 218: “A
diversidade das aptidões naturais dos homens vem de onde? – Da diversidade
dos Espíritos, que são mais ou menos avançados.”
Assim, Garibaldi, como outros homens de destaque,
não era resultado do acaso, mas expressão de um Espírito experiente, que já
havia acumulado virtudes e capacidades em outras existências.
Consequências
morais e filosóficas
A diferença entre as duas concepções — materialista
e espiritualista — é profunda:
- Se tudo se extingue com a morte, o trabalho intelectual e moral é
inútil; o gênio perece no túmulo, reduzido à matéria em decomposição.
- Se a alma sobrevive, então cada conquista, cada esforço, cada
talento permanece como patrimônio imperecível do Espírito, que o leva
consigo após a desencarnação.
Nesse sentido, o Espiritismo confere sentido à
vida, mérito ao esforço e finalidade ao progresso. O trabalho humano, longe
de ser perdido, contribui para a perfeição do ser imortal.
Conclusão
O episódio da análise frenológica da cabeça de
Garibaldi, comentado por Kardec na Revista Espírita de março de 1861,
vai além da curiosidade científica: torna-se ocasião para reafirmar a primazia
do Espírito sobre a matéria.
O gênio não é obra do acaso nem resultado exclusivo
da organização cerebral; é conquista do Espírito imortal, fruto de experiências
anteriores e de esforços perseverantes.
A Doutrina Espírita, ao esclarecer a relação entre
alma e corpo, supera as contradições do materialismo, oferecendo uma visão que
harmoniza ciência, filosofia e moral. Assim, compreendemos que cada talento
humano, longe de se perder com a morte, é semente de progresso eterno,
confirmando a justiça divina e a lei do progresso universal.
(*) O que é a Frenologia?
O termo frenologia vem do grego antigo — phrēn
(mente) e lógos (estudo ou conhecimento) — e em seu sentido literal
significa “estudo da mente”. Porém, historicamente, essa palavra ganhou um
significado mais específico e controverso: a crença de que as saliências e
reentrâncias do crânio humano poderiam revelar traços de personalidade,
faculdades mentais e até tendências de caráter.
No início do século XIX, o médico alemão Franz
Joseph Gall sistematizou a frenologia como uma prática que considerava o
cérebro o órgão da mente e sustentava que cada faculdade mental possuía uma
região específica. Segundo essa concepção, o tamanho e o desenvolvimento dessas
áreas se refletiriam no formato do crânio, permitindo supostas leituras sobre
inteligência, moralidade e habilidades. Assim, os frenologistas “mapeavam” a
cabeça em busca de caroços e saliências, acreditando que ali residiam os
segredos do caráter humano.
Apesar de ter influenciado debates sobre a
localização de funções cerebrais, a frenologia rapidamente foi alvo de críticas
severas. Por carecer de método científico, ser incapaz de apresentar provas
consistentes e, sobretudo, por ter sido usada em discursos discriminatórios e
racistas, ela acabou classificada como uma pseudociência.
Hoje, a frenologia não possui validade científica,
nem é praticada como campo de estudo legítimo. Contudo, seu legado permanece em
três frentes principais:
- História da ciência: é analisada como exemplo
de como ideias pseudocientíficas podem ganhar popularidade, moldar debates
acadêmicos e depois serem superadas.
- Neurociência e psicologia: reconhece-se que, embora
equivocada, a frenologia estimulou pesquisas sobre a especialização
funcional do cérebro, abrindo caminho para a neuropsicologia moderna.
- Antropologia forense: algumas abordagens, como a
chamada paleofrenologia, procuram estudar crânios antigos para
inferir aspectos do desenvolvimento cerebral — mas sempre com reconhecidas
limitações.
Portanto, a frenologia é lembrada não como ciência,
mas como parte da história das ideias sobre a mente e o cérebro,
revelando tanto os enganos quanto os avanços que marcam o percurso do
conhecimento humano.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita. Março de 1861: A Cabeça
de Garibaldi.
- KARDEC, Allan. Revista Espírita. Julho de 1860: Frenologia
e Fisiognomonia.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas.
- FINGER, Stanley. Origins of Neuroscience: A History of Explorations into Brain Function. Oxford University Press, 1994.
- YOUNG, Robert M. Mind, Brain and Adaptation in the Nineteenth Century: Cerebral Localization and Its Biological Context from Gall to Ferrier. Oxford: Clarendon Press, 1970.
- ORTIZ, Eduardo. História da Frenologia: ciência, pseudociência e racismo científico no século XIX. Revista de História das Ideias, v. 41, n. 2, 2020.
- ANKER, Suzanne. Neuroculture: The Brain is the New Art. In: Nature Reviews Neuroscience, v. 5, 2004.
- THOMSON, Helen. Phrenology: How a Pseudoscience Proved Surprisingly Useful. New Scientist, 2018.
- PARKER, Steve; WEST, Richard. Franz Joseph Gall and Phrenology. In: The Brain Book. London: Dorling Kindersley, 2009.
- Oxford University. Phrenology Revisited: No Evidence for Links Between Head Shape and Personality. University of Oxford News, 2018. Disponível em: https://www.ox.ac.uk/news.
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