Introdução
Ao
longo da história, a relação dos seres humanos com o invisível e com os mortos
sempre suscitou fascínio, medo e debates acalorados. As tradições religiosas,
em diferentes épocas, estabeleceram normas que buscavam regular — e, por vezes,
interditar — essas práticas. Um exemplo notório encontra-se na lei de Moisés,
que proibia severamente a consulta aos mortos, equiparando-a à feitiçaria e prevendo
a pena de morte aos que a praticassem.
Séculos
mais tarde, com o advento do Espiritismo codificado por Allan Kardec no século
XIX, ressurgem as comunicações entre os vivos e os Espíritos, mas com objetivos
profundamente distintos daqueles que motivaram a interdição mosaica. Este
artigo busca refletir, de forma racional e fundamentada na Doutrina Espírita e
na Revista Espírita (1858-1869),
sobre a diferença de sentido entre as antigas práticas condenadas e a proposta
moral e consoladora do Espiritismo, demonstrando por que a proibição de Moisés
não se aplica ao contexto atual.
1. A natureza da proibição mosaica
As
leis de Moisés, registradas no Levítico e Deuteronômio, proibiam consultas a
adivinhos, médiuns ou necromantes (Levítico 19:31; 20:27; Deuteronômio
18:9-12). Essa interdição não se originava de uma preocupação moral com os
mortos, mas de motivos políticos e culturais. Os hebreus estavam em processo de
formação nacional e deveriam romper com os costumes egípcios e cananeus, onde
essas práticas estavam associadas à superstição, ao comércio da fé e, por
vezes, a sacrifícios humanos.
Assim,
a proibição visava proteger o povo de abusos, charlatanismo e sincretismos que
poderiam desviar sua fidelidade a um Deus único. Era uma lei civil e
disciplinar, moldada ao contexto histórico e ao nível de compreensão
daquela sociedade nômade e belicosa. Não constituía um mandamento moral
universal e eterno, como os do Decálogo.
2. A mudança dos tempos e o papel de Jesus Cristo
Ao
trazer o Evangelho, Jesus atualizou a lei mosaica, elevando-a do legalismo para
o amor e a caridade. Em nenhum momento Ele proibiu a comunicação com os mortos,
apesar de tratar de vários outros temas controversos. Isso revela que a
interdição mosaica não possuía caráter moral absoluto, mas circunstancial.
Se a
revelação divina é progressiva, como ensina a Doutrina Espírita (O Livro dos Espíritos, questões 614 a
628), é natural que novas luzes sobre a vida espiritual surjam à medida que a
humanidade evolui intelectualmente e moralmente. O Espiritismo representa uma
dessas etapas, oferecendo um método racional e ético de comunicação com os
Espíritos, livre das práticas supersticiosas do passado.
3. O Espiritismo e a finalidade moral das
comunicações
Diferente
das antigas evocações voltadas à adivinhação ou à exploração material, o
Espiritismo propõe um intercâmbio baseado na caridade, na educação moral e no
consolo espiritual. As reuniões sérias e os trabalhos mediúnicos, conforme
orientado em O Livro dos Médiuns,
devem ser conduzidos com recolhimento, respeito e finalidade instrutiva, nunca
como espetáculo ou comércio.
As
mensagens dos Espíritos revelam as consequências da conduta humana após a
morte, testemunhando a justiça divina e a lei de causa e efeito. Ao invés de
estimular a curiosidade ou a superstição, essas comunicações fortalecem a fé
raciocinada, combatendo o materialismo e a incredulidade. Como destacou
Allan Kardec na Revista Espírita, o
Espiritismo “não é uma religião de
milagres, mas uma ciência de observação moral”.
4. A atualidade da questão
No
mundo contemporâneo, práticas como a charlatanice, o curandeirismo e a
exploração da fé continuam existindo — mas são combatidas por leis civis e não
mais por penas bárbaras. A sociedade dispõe de instrumentos jurídicos e
educativos para prevenir abusos. A comunicação com os Espíritos, quando
exercida com responsabilidade, não viola a lei natural nem o respeito aos
mortos — ao contrário, honra a memória dos que partiram e auxilia os que
sofrem.
Recusar
a possibilidade das comunicações seria desprezar um dos mais eficazes
recursos de instrução espiritual e consolo moral, que tem libertado
milhares de consciências do medo da morte e do vazio existencial. Como bem
resume um Espírito citado por Allan Kardec:
“Todo Espírito sofredor
e desolado vos contará a causa da sua queda… Ao ouvi-lo, dois sentimentos vos
acometerão: o da compaixão e o do temor — compaixão por ele, temor por vós
mesmos.”
5. Conclusão
A
proibição mosaica das evocações não se aplica ao Espiritismo, porque se baseava
em circunstâncias históricas, políticas e culturais que já não existem. O
Espiritismo, ao contrário das práticas antigas, não busca adivinhar o futuro
nem explorar os mortos, mas consolar, esclarecer e moralizar.
Rechaçar
as comunicações espirituais com base em leis do passado é ignorar o progresso
humano e a revelação contínua das leis divinas. Se os Espíritos podem vir — e
vêm espontaneamente — é sinal de que a Providência os permite para nosso
aprendizado e elevação. O verdadeiro respeito aos mortos não está no silêncio
imposto pela ignorância, mas no diálogo fraterno que reconhece a imortalidade
da alma.
Referências
- Allan Kardec. O
Livro dos Espíritos. 1857.
- Allan Kardec. O
Livro dos Médiuns. 1861.
- Allan Kardec. A
Gênese. 1868.
- Allan Kardec. Revista
Espírita (1858-1869).
- Bíblia Sagrada —
Livros do Levítico, Deuteronômio, Isaías e Êxodo.
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