Introdução
A
Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec a partir de 1857, surgiu como um
marco de clareza no campo das ideias espiritualistas, trazendo método,
racionalidade e universalidade às manifestações dos Espíritos. Para nomear essa
nova ciência filosófico-moral, Kardec cunhou o termo Espiritismo, um
neologismo necessário para diferenciá-la do espiritualismo genérico.
Entretanto,
ao longo do tempo, especialmente no Brasil, consolidaram-se usos imprecisos
como a expressão “Kardecismo”. Embora muitas vezes empregada sem intenção de
deturpar, essa palavra gera equívocos conceituais que comprometem a compreensão
da Doutrina em sua essência. Neste artigo, examinamos o problema à luz da
Codificação e da Revista Espírita (1858-1869), destacando a importância
da terminologia correta na preservação da unidade espírita.
Origem do termo “Espiritismo”
O
vocábulo Espiritismo foi criado por Allan Kardec e apresentado pela
primeira vez em O Livro dos Espíritos (1857). Sua função era dar nome a
uma doutrina nova, distinta das correntes espiritualistas existentes. Kardec
esclareceu que o Espiritismo não era fruto de sua invenção pessoal, mas
resultado das instruções dos Espíritos Superiores, colhidas, comparadas e
organizadas por ele com rigor científico e filosófico.
Em O
que é o Espiritismo (1859), o Codificador reforça que sua missão era de codificador
e não de autor da Doutrina. Essa distinção é fundamental: a Doutrina pertence
aos Espíritos; Kardec foi o organizador do ensino.
O equívoco do termo “Kardecismo”
O termo
“Kardecismo”, bastante comum no Brasil, sugere que se trata de uma doutrina
fundada por um homem – algo que Kardec sempre rejeitou. Como lembra Herculano
Pires, chamar o Espiritismo de “Kardecismo” é reduzir sua dimensão universal a
uma escola de pensamento individual.
O sufixo
“-ismo”, quando associado a nomes próprios, costuma indicar correntes criadas
por seus fundadores (marxismo, luteranismo, darwinismo). No caso do
Espiritismo, a aplicação desse raciocínio induz ao erro, pois não foi Kardec
quem criou seus princípios, mas sim os Espíritos que os revelaram.
Na Revista
Espírita de julho de 1859, Kardec afirma:
“A ideia não é de um homem, mas
dos Espíritos que se manifestam por toda a parte. Buscar-lhe a origem na Terra
é desconhecer-lhe o verdadeiro caráter.”
Assim, ao
usar “Kardecismo”, corre-se o risco de transmitir ao público uma imagem
incorreta: a de que o Espiritismo seria apenas uma filosofia pessoal, e não uma
revelação de alcance universal.
Espiritismo: uma só Doutrina
Outro
problema linguístico frequente é a multiplicação de adjetivos como “Espiritismo
científico”, “Espiritismo cristão”, “Espiritismo de mesa branca” ou
“Espiritismo de Umbanda”. Tais expressões fragmentam a Doutrina e obscurecem
sua natureza.
É verdade
que Kardec utilizou classificações como Espiritismo Experimental (para
os métodos de observação) e Espiritismo Prático (para as atividades
mediúnicas). Contudo, jamais propôs subdivisões doutrinárias. Para ele, o
Espiritismo é uno, integrando ao mesmo tempo Ciência, Filosofia e Religião,
entendida esta última em seu aspecto moral e não ritualístico.
Em A
Gênese (1868), Kardec alerta para o risco das interpretações pessoais e
reforça que a força da Doutrina está em sua unidade de princípios. Fragmentá-la
em “ramos” ou “versões” é desviar-se de sua essência.
Espiritismo e Umbanda: distinções necessárias
A
confusão entre Espiritismo e Umbanda é outro fruto da imprecisão terminológica.
A Umbanda, religião brasileira surgida no início do século XX, incorpora elementos
do catolicismo popular, do espiritismo e das tradições afro-indígenas. Já o
Espiritismo, codificado por Kardec, tem como fundamento a observação científica
dos fenômenos mediúnicos e suas consequências filosófico-morais.
O uso de
expressões como “Espiritismo de Umbanda” é, portanto, um erro conceitual, pois
aproxima sistemas distintos em origem, método e finalidade. O respeito às
tradições religiosas não dispensa a clareza terminológica.
Preservar a terminologia é preservar a Doutrina
Mais do
que uma questão semântica, a defesa do termo Espiritismo é um dever de
fidelidade doutrinária. Kardec cunhou esse neologismo justamente para evitar
confusões. Adotar rótulos paralelos como “Kardecismo” ou adjetivos
fragmentários fragiliza a identidade da Doutrina e abre espaço para
deturpações.
Preservar
a terminologia é preservar também o Evangelho de Jesus em sua aplicação
espírita, já que o núcleo moral da Doutrina é justamente a vivência cristã “em
espírito e verdade” (O Evangelho segundo o Espiritismo, 1864).
Conclusão
O
Espiritismo não é “Kardecismo”. É uma Doutrina universal, revelada pelos
Espíritos Superiores e codificada por Allan Kardec com método e clareza. Usar o
termo correto não diminui a importância do Codificador; pelo contrário, exalta
sua verdadeira missão: organizar e transmitir uma revelação que transcende
épocas, culturas e fronteiras.
A
fidelidade ao termo Espiritismo é, portanto, uma forma de respeito à
integridade da Doutrina e à própria universalidade de seus princípios. Cabe aos
espíritas de hoje preservar essa unidade, para que o Espiritismo continue a
cumprir sua missão iluminadora no mundo contemporâneo.
Referências
- KARDEC, Allan. O Livro
dos Espíritos. 1ª ed. Paris: 1857.
- KARDEC, Allan. O que é o
Espiritismo. Paris: 1859.
- KARDEC, Allan. O
Evangelho segundo o Espiritismo. Paris: 1864.
- KARDEC, Allan. A Gênese.
Paris: 1868.
- KARDEC, Allan (dir.). Revista
Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos. Paris: 1858-1869.
- PIRES, José Herculano. Introdução
à Filosofia Espírita. São Paulo: Edicel, 1960.
- ARRUDA, Andres Gustavo. Espiritismo
ou Kardecismo? Artigo.
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