No século XIX, em meio ao florescimento das
ciências e à crise das crenças religiosas tradicionais, o debate sobre a
liberdade de pensamento ocupava lugar central nas discussões intelectuais.
Allan Kardec, atento a esse movimento, registrou na Revista Espírita de
fevereiro de 1867 reflexões sobre duas correntes distintas que se reivindicavam
como “livres pensadores”: de um lado, os que negavam qualquer crença espiritual
e reduziam tudo à matéria; de outro, os que buscavam conciliar a razão com a fé
raciocinada, libertando-se do jugo da crença cega.
O Espiritismo, pela sua própria natureza,
posiciona-se nesse campo de diálogo, apresentando-se não como uma nova forma de
dogmatismo, mas como uma filosofia que respeita o livre exame, a consciência
individual e a busca racional pela verdade.
Livre
Pensamento ou Livre Consciência?
O texto da Revista Espírita distingue duas
atitudes diante da liberdade intelectual:
- Livre Pensamento (materialista): entendido como emancipação
da fé, mas ao preço de negar qualquer realidade além da matéria. Para essa
corrente, questões sobre a origem e o destino da humanidade seriam
secundárias e perturbadoras da razão, cabendo apenas ao estudo das
ciências imediatas aquilo que fosse tangível e mensurável.
- Livre Consciência (espiritualista): caracterizada pelo esforço de subordinar a crença à razão, sem
rejeitar de antemão a realidade espiritual. Representava, assim, uma forma
de liberdade ampliada, pois buscava compreender as consequências morais e
filosóficas da existência.
Kardec observa que reduzir a liberdade de pensar à
negação de tudo que transcende a matéria é, na verdade, restringir o pensamento
humano. Como poderia ser mais livre aquele que se fecha dentro dos limites do
tangível do que aquele que, sem abandonar o exame racional, ousa sondar os
horizontes do infinito?
A
Necessidade de Compreender o Futuro
Um ponto central do artigo de 1867 é a crítica à
indiferença materialista quanto ao destino da alma após a morte. Kardec lembra
que a incerteza sobre o futuro gera desespero, desequilíbrio e até mesmo a
loucura. Ao contrário, a certeza da vida espiritual e da continuidade da
existência fortalece o homem diante das dores presentes, oferecendo-lhe coragem
moral e serenidade.
Em O Livro dos Espíritos, os Espíritos
Superiores afirmam que “a preocupação com o futuro é um dos mais poderosos
instintos que Deus deu ao homem” (LE, q. 959). Saber de onde viemos, por que
vivemos e para onde vamos não é curiosidade estéril, mas condição necessária
para orientar a vida moral e coletiva da humanidade.
Ciência,
Filosofia e Espiritualidade
O jornal Livre Pensamento argumentava,
citando Helvétius, que “é preciso ter a coragem de ignorar o que não se pode
saber”. Kardec, porém, amplia essa máxima: não se trata de conservar a
ignorância, mas de reconhecer humildemente os limites do conhecimento humano,
sem negar a possibilidade de novos avanços.
A ciência, muitas vezes, demonstrou como erro o que
antes parecia verdade absoluta. Do mesmo modo, o Espiritismo surge como
revelação de novas leis da natureza, especialmente no campo das relações entre
o mundo material e o mundo espiritual. Baseado na observação e na experiência,
ele demonstra que crer em Deus e na imortalidade da alma não é uma crença
gratuita, mas uma dedução lógica dos efeitos inteligentes observados nos
fenômenos mediúnicos: “Todo efeito inteligente tem por causa uma inteligência”
(LE, q. 459 e seguintes).
Assim, a filosofia espírita alia ciência e moral,
mostrando que o livre pensamento só se realiza plenamente quando reconhece
tanto as provas materiais quanto as provas morais.
O Livre
Pensamento no Sentido Espírita
Para o Espiritismo, o verdadeiro livre pensamento
não consiste em negar o espiritual, nem em aceitar cegamente qualquer dogma,
mas em examinar, comparar e escolher livremente, segundo o raciocínio e a
consciência.
Kardec define esse método com clareza: “Antes de
crer, é preciso compreender” (O que é o Espiritismo). Por isso, a
Doutrina não se impõe, mas se propõe: convida à observação e ao estudo, sem
exigir adesão prévia. Essa postura distingue o Espiritismo tanto da fé cega
quanto do materialismo absoluto, oferecendo uma via de equilíbrio e tolerância.
No artigo de 1867, Kardec conclui que:
- O livre pensamento verdadeiro é aquele que se apoia no livre exame.
- Toda crença adotada por convicção própria, após reflexão, pode ser
considerada um pensamento livre.
- O Espiritismo é compatível com o mais rigoroso positivismo, pois
parte da observação e da experiência, sem excluir a dimensão espiritual.
Conclusão
O debate entre Livre Pensamento e Livre
Consciência revela mais do que uma disputa de jornais do século XIX:
trata-se da eterna questão da relação entre razão e fé. O Espiritismo mostra
que a liberdade de consciência só se realiza quando se unem ciência, filosofia
e moral, libertando o homem tanto do jugo da superstição quanto do estreito
materialismo.
Ao invés de impor crenças, a Doutrina Espírita
respeita o direito de cada um pensar, mas oferece à razão elementos sólidos
para compreender que a vida não termina na sepultura. É nesse equilíbrio entre
liberdade e responsabilidade, exame e fé raciocinada, que o Espiritismo se
apresenta como caminho de emancipação intelectual e moral da humanidade.
Referências
- KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos,
fevereiro de 1867.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 1857.
- KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 1861.
- KARDEC, Allan. A Gênese. 1868.
- KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. 1859.
- KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 1890.
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